sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Memorial Fílmico

A asserção "Do Minho a Timor somos todos portugueses" assinala uma evolução de um modelo político colonial, inicialmente baseado numa teoria social darwinista e que, a partir de 1951, assimila o luso-tropicalismo, teoria social desenvolvida por Gilberto Freyre, sobre um multiculturalismo assente num denominador comum: a língua portuguesa como pátria.
A análise que faremos desta representação basear-se-à no visionamento, no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, da série de actualidades cinematográficas"Imagens de Portugal" (1953-1971), e será complementada com o visionamento de documentários de propaganda. Será também articulado com o nosso conhecimento da série "Jornal Português" (1938-1951). Empreender-se-à ainda o confronto dessa representação com aquela traduzida por olhares disruptivos em filmes de ficção de autor, amputados pela Censura.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Apresentação de "Salazar vai Ao Cinema" por João Lopes

Num apontamento escrito a 14 de Janeiro de 1962 (portanto há quase 45 anos), citado no livro “O Diário de Salazar”, de António Trabulo, António de Oliveira Salazar escreveu estas palavras:

“Vi-me na televisão. Estou velho e, o que é pior, pareço velho. Nunca tive a voz muito firme; agora, está uma lástima. Aquela caixa pequena ainda é mais cruel do que o espelho. Ao enfrentá-lo, estamos vigilantes e mostramos de nós próprios o que pretendemos ver. Na televisão, só em parte é assim; não expomos apenas os ângulos que escolhemos. Daqui em diante mandarei lá ministros bem apessoados para que transmitam uma imagem favorável do Governo. Eu só voltarei em circunstâncias excepcionais. Quanto às reportagens, podem ser trabalhadas. Segundo me contam, não é difícil”.

São palavras paradoxalmente obscuras e luminosas, suaves e violentas. Dão conta de uma resistência individual às imagens e, ao mesmo tempo, reconhecem nessas mesmas imagens uma função pública precisa, certamente indissociável do colectivo social, dos seus movimentos, conflitos e valores.

Curiosamente, se é verdade que Salazar mostrava reticências, ou mesmo desprezo, pela possibilidade de se mostrar em televisão, não é menos verdade que a sua presença no cinema foi objecto de uma estratégia precisa, em grande parte estabelecida sob a égide de António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional.

Ora, o livro de Maria do Carmo Piçarra, “Salazar Vai ao Cinema”, é um objecto pacientemente didáctico e genuinamente histórico, um livro para compreendermos um pouco mais dessa inquietação que continua a acompanhar-nos e, em muitos aspectos, a questionar-nos – é a questão das relações do Estado Novo com as imagens e, em particular, das relações de Salazar com o cinema.

Trata-se, aliás, de um livro com um título de irónica ambiguidade: “Salazar Vai ao Cinema”.

Isto porque, de facto, o seu tema nuclear é a presença de Salazar nas salas de cinema em Portugal, concretamente através das 95 edições das actualidades cinematográficas que receberam o nome “Jornal Português” e que, entre 1938 e 1951, foram financiadas pelo Secretariado da Propaganda Nacional, com direcção e realização a cargo de António Lopes Ribeiro. Quer isto dizer que o regime aproveitou o modelo então corrente das actualidades para promover a imagem do seu líder e a sua direcção do país.

Ao mesmo tempo, o título “Salazar Vai ao Cinema” envolve uma contradição essencial e, no limite, estrutural – contradição de Salazar, enquanto líder político, e contradição também do regime que, a partir de certa altura, por assim dizer, se entronizou na sua própria figura. Essa contradição nasceu de uma crescente resistência às imagens e, em particular, às imagens de cinema.

De facto (e simplificando muito, como é óbvio), pode dizer-se que a história visual e iconográfica do regime salazarista evoluíu a partir de uma tensão que nunca foi resolvida. Em primeiro lugar, a dinamização dos estúdios da Tóbis, logo nos primeiros anos do Estado Novo, tentou dar consistência a uma prática do cinema em que a componente de propaganda coexistisse com um sentido peculiar de entretenimento e cinema popular. Depois, foi-se instalando um crescente vazio figurativo, tanto do regime como do seu líder, vazio que, pelo menos em parte, poderá ajudar a explicar a decadência da produção cinematográfica ao longo da década de 50 – esse vazio seria bruscamente dramatizado com a eclosão da guerra colonial, no começo dos anos 60, e também com a passagem a uma nova idade visual, ou audiovisual, a idade da televisão.

O livro de Maria do Carmo Piçarra é, antes do mais, eminentemente informativo. E aqui importa fazer uma ressalva, sobretudo para os que possam julgar que essa carga de informação menospreza a elaboração de um ponto de vista.

De facto, não é isso que acontece, pela simples razão de que o primeiro e decisivo ponto de vista de “Salazar Vai ao Cinema” é que continuamos a conhecer pouco – e, por vezes, a conhecer mal – o sistema de relações entre Salazar e o cinema, o cinema e o Estado Novo, o Estado Novo e o imaginário cinematográfico da época.

Daí que este seja um livro que nos permite revisitar um tempo que, de facto, cada vez mais, importa libertar de muitos clichés políticos ou morais, construídos à esquerda e à direita, e que com frequência nos impedem um conhecimento real e exigente da complexidade factual – e também da rede simbólica – que, de uma maneira ou de outra, sustentaram uma ditadura de 48 anos.

Nesse aspecto, não queria deixar de referir o modo como “Salazar Vai ao Cinema” acompanha de forma muito cuidadosa o trabalho de um cineasta como António Lopes Ribeiro.

Nascido em 1908 e falecido em 1995, Lopes Ribeiro é um daqueles nomes muitas vezes tratado a partir de uma retórica descritiva profundamente redutora. Não por todos, como é óbvio – e lembro, por exemplo, que a sua obra já foi objecto de uma esclarecedora retrospectiva, aqui mesmo, nesta casa. Falo, sobretudo, dessa espécie de conhecimento “universal” (universal entre aspas, claro) que tende a reduzir tudo e todos a imagens de marca de enorme simplismo e até, por vezes, de enorme agressividade. Basta lembrar os clichés que circulam sobre a obra de Manoel de Oliveira – nesse sentido, talvez seja inevitável que Lopes Ribeiro seja objecto do mesmo tipo de ignorância e das mesmas grosseiras simplificações.

Ora, um dos capítulos de “Salazar Vai ao Cinema” procura, justamente, libertar a figura de Lopes Ribeiro do espartilho dos lugares-comuns. E tentando não omitir nada. Ou seja: lembrando que para compreender a sua figura é preciso convocar o propagandista do regime e o jornalista, o cineasta e o produtor, a fé em Salazar e a também a crença muito cinéfila no cinema e nas suas potencialidades expressivas.

Felizmente, “Salazar Vai ao Cinema” não é um livro isolado. Em tempos recentes, temos assistido ao aparecimento de um número muito razoável de edições, certamente diversas e contrastadas, mas que trabalham no sentido de refazer a memória do Estado Novo e, em particular, de libertar essa memória de muitas ideias feitas, umas enraizadas nos tempos do próprio regime, outras, importa reconhecê-lo, geradas, paradoxalmente, no interior da própria energia libertadora do 25 de Abril.

Resumindo, diria que “Salazar Vai ao Cinema” é um objecto que nos pode ajudar a compreender como é que Salazar e o Estado Novo foram representados pelo cinema e através do cinema – desde o registo das imagens até aos mecanismos de montagem, passando por esse momento essencial que era a inserção dos comentários em off, este é um estudo que procura, realmente, entender o cinema enquanto objecto que se fabrica, não para confirmar as aparências do real, mas para lhe conferir um sentido, porventura até para proclamar uma ideologia que quer fazer acreditar que esse real possui uma vocação e uma transcendência.

O livro de Maria do Carmo Piçarra diz-nos, afinal, que o nosso passado continua a ser uma forma particular do nosso presente. Para utilizar um velho palavrão que caíu em desuso, eu diria que isso se chama dialéctica – e que tal dialéctica nos ensina a olhar melhor para o que somos ou, se for caso disso, para o que julgávamos ser.

João Lopes

"Salazar Vai ao Cinema"


Lançamento de "Salazar Vai ao Cinema" na Cinemateca Portuguesa, em Dezembro de 2006.
Da esquerda para a direita, Isabel Garcia (Minerva), eu e João Bénard da Costa.

Colonialismo e cinema


Com o estatuto de bolseira da FCT posso agora dedicar-me a tempo inteiro à pesquisa iniciada em 2007 no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento. Após o incêndio na Serra de Ossa me ter devolvido à cidade comecei o visionamento da série de actualidades "Imagens de Portugal", a segunda série que o Estado Novo pagou para fazer a sua propaganda. António Lopes Ribeiro, primeiro. Depois Perdigão Queiroga. Produziram, através de produtoras próprias e realizaram. No início da década de 60 foi a Tóbis a garantir a produção das actualidades estatais. António da Cunha Telles, em princípio de carreira, passou por lá.
A televisão já estava em pleno e, contrariamente ao que sucedeu durante a existência de "Jornal Português", por mim estudado no contexto da propaganda do Estado Novo (estudo que originou a publicação de "Salazar Vai ao Cinema", isso implicou um recuo do cinema como arma de propaganda. Mas se esse recuo se deu e tirou importância às actualidades cinematográficas - que na década de 70 deixaram de existir praticamente em todo o mundo - a verdade é que nelas se revela de modo directo o discurso do regime. São, portanto, fontes extraordinárias para olhar as representações cinematográfica do regime. Proponho-me estudar esses "azuis ultramarinos" com que o regime quis colorir a história da colonização portuguesa. Este blogue servirá de depósito das impressões e reflexões a lanço durante os quatro anos de investigação que agora inicio.

Foto: Arquivo da Cinemateca Portuguesa