quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O cinema que cada humanidade merece

“Cada humanidade terá, pois, o cinema (e a história) que merece; e por isso se torna fundamental o papel da análise: para repôr como as pessoas viam, o que viram, com o olhar consciência no tempo em que o viram. Porque, afinal, é esse olhar que se encontra depositado no interior das ‘latas dos filmes’” (Grilo, João Mário: Lição de Agregação)

Imagem: Chaimite, de Jorge Brum do Canto (1953)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Arqueologia do filme e memória do século


Na entrevista que Youssef Ishaghpour fez a Godard e que resultou na publicação de Cinema, diz Ishaghpour sobre o cinema no século e o século no cinema:
"So it's about cinema in the century and the century in cinema. This, as you say, is because cinema consists of a particular relationship between reality and fiction. And since its power made cinema the century's manufacturing plant, or in your words made 'the twentieth century exist', it's as important as any major historical event, and can take its place along the other on that basis But since those events were determined partly by cinema, and were also filmed for cinema newsreels, they're an integral part of cinema, and because, as history, those events acted on the destiny of cinema, they're part of cinema history. History of cinema, History of the News, actuality of History", as you say many times."

HISTOIRE(S) DU CINEMA Chapter1A - Toutes les Histoires(All the Histories)-1/6

Histoire(s) du Cinèma


Uma história do cinema e uma história do século XX, uma no interior da outra, ao longo de quatro horas e meia. Um filme, quatro filmes e oito filmes; uma obra completa portanto, dividida em quatro capítulos que abrem para duas secções cada. Godard criou Histoire(s) du Cinéma num período de doze a treze anos, entre meados dos anos oitenta e 1998, no estúdio em Rolle, na Suiça, onde o cineasta vive e trabalha desde finais dos anos 70. Interrompindo por outros compromissos e por dificuldades com produtoras de TV, o resultado - diz Godard - beneficiou destes atrasos. Trata-se de uma montagem densa de excertos de filmes de toda a história do cinema, mas também de fotografias, reproduções de pinturas, comentadas por legendas, por pedaços de banda sonora também ela compósita (poemas, discursos gravados, etc.) a que se sobrepõe a voz do autor. A palavra a Godard: "It's eight films combined in one, both together. It came like that. But it's eight chapters of a film that could have had hundreds of others, and even more appendices, like the footnotes that are often more interesting to read than the actual text..."

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O Gabinete do Dr. Caligari, Part 1

Quando, adolescente, comecei a frequentar a Cinemateca Portuguesa, o expressionismo alemão impressionou-me vivamente. O Gabinete do Dr. Caligari, que inicialmente era suposto ser realizado por um dos meus realizadores favoritos, Fritz Lang, impôs-se pelos cenários e pela iluminação, claro, mas também pela estranheza da história deste sonâmbulo manipulado por Caligari. Advertência: esta versão, disponível no You Tube, propõe uma banda sonora que não é a original.

De Caligari a Hitler


Escrito em 1948, "De Caligari a Hitler - Uma histórica psicológica do filme alemão", de Siegfried Kracauer, continua a ser uma obra chave para a compreensão dos cinemas nacionais e da história das mentalidades. Se "La Projection Nationale", de Jean-Michel Frodon (director dos Cahiers du Cinèma), é incontornável para mim, no âmbito do estudo que estou a fazer, a obra de Kracauer é uma chave para a compreensão de como o cinema traduziu disposições mentais desde o início da sua história. E tem a enorme qualidade de olhar para os filmes sem os isolar uns dos outros mas em relação, assumindo-os tal como são: fruto de uma arte colaborativa por excelência.

Fica uma pequena nota biográfica do autor. Judeu, que colaborou em revistas para onde Walter Benjamin escreveu e de quem Adorno confessou ser uma referência para o seu pensamento, também ele teve de exilar-se nos EUA, após a subida dos nazi ao poder, e foi acolhido pela academia americana.

O que segue são apontamentos do seu pensamento.

I. Luz e cenários.

Foi o talento dos realizadores alemães na criação de uma esfera visual - cenários impressionantes e disposição da acção com a luz adequada - que se impôs como traço característico do filme alemão entre guerras, não obstante a mudança de temas e modos de representação cinematográfica. O facto de serem macabros, sinistros, também os caracterizou mas não foi por essa via que deixaram uma marca profunda na história do cinema. O contributo dos alemães para a autonomia de movimentos da câmara também se impôs, sobretudo para os conhecedores. Mas não há nenhum especialista que não reconheça o poder organizacional operativo nestes filmes - uma disciplina colectiva contributiva para a unidade narrativa assim como para a integração perfeita das luzes, cenários e actores. Numa expressão de respeito, Hollywood contratou todos os realizadores, técnicos e realizadores que pôde. Mas também o cinema francês e o cinema russo - e este foi marcado sobretudo ao nível da iluminação - foram influenciados pelo filme alemão.
Quando escreve, em 1948, Siegfried Kracauer constata que a admiração e imitação não precisam de basear-se no respeito mútuo. E afirma que tudo o que se escreveu, eminentemente estético, sobre o cinema alemão, e as tentativas de análise das suas excepcionais qualidades e para uma compreensão dos problemas inquietantes levantados pela sua existência, lida com os filmes como se se tratassem de estruturas autónomas.

II. Filmes Nacionais

Kracauer constata que os filmes de uma Nação reflectem a sua mentalidade de modo mais directa do que outros modos de expressão artística por duas razões:

1. os filmes nunca são o produto de um indivíduo. Kracauer evoca Pudovkin quando este enfatiza o carácter colectivo da produção de filmes identificando-o com a produção industrial e sublinhando o necessário trabalho de equipa.
2. os filmes dirigem-se à multidão anónima. Pode supôr-se que os temas cinematográficos populares supostamente devem satisfazer desejos existentes das massas. Kracauer comenta a opinião segundo a qual Hollywood oferece às pessoas filmes que estas não querem realmente, persuandido-as por via da passividade destas e através da publicidade. Mas o autor diz que não deve sobrevalorizar-se a distorção introduzida pelo cinema de entretenimento de massas de Hollywood. O manipulador depende das qualidades inerentes do seu material e até os filmes de propaganda de guerra nazi oficiais, não obstante serem pura propaganda, espelhavam certas características nacionais que não podiam ser fabricadas. Isso aplica-se com mais propriedade ainda a uma sociedade competitiva. Hollywood não pode dar-se ao luxo de ignorar a espontaneidade do público. A indústria cinematográfica, interessada vitalmente no lucro como está, tem de ajustar-se, tanto quanto possível, às mudanças do “clima mental”. As audiências americanas recebem o que Hollywood quer que elas queiram mas, no longo prazo, o público determina a natureza dos filmes de Hollywood.

III. Filmes como reflexos de disposições psicológicas

O que os filmes reflectem não são tanto crenças explícítas quanto disposições psicológicas - essas camadas profundas da mentalidade colectiva que se desenvolvem mais ou menos abaixo da dimensão da consciência. Kracauer afirma que as revistas populares, os bestsellers, a moda, etc. também dão informação valiosa sobre atitudes predominantes, e tendências interiores. No entanto, o autor considera que o cinema excede essas outras fontes em profundidade.
Devido ao trabalho de câmara, montagem e a outros mecanismos cinematográficos, os filmes são capazes e mesmo obrigados a perscutar todo o mundo visível. Isto resulta no que Erwin Panofski definiu como a “dinamização do espaço”. “ Num cinema... só fisicamente é que o espectador tem um lugar fixo... Esteticamente, está em movimento permanente, à medida que o seu olho se identifica com a lente da câmara que muda permanentemente em distância e direcção. E o espaço apresentado ao espectador é tão móvel quanto o próprio espectador. Não apenas corpos sólidos se movem no espaço, mas o próprio espaço se move, mudando, revirando-se, dissolvendo-se e recristalizando-se...”.