terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lopes Barbosa e o seu filme da "frente de guerrilha"


Deixem-me ao menos subir às palmeiras… antecipou o projecto de televisão e cinema moçambicanos que, após a independência, em 1975, o novo governo encomendou, sem os resultados esperados, a Jean-Luc Godard e a Jean Rouch. Proibido antes do 25 de Abril de 1974, nunca teve estreia comercial, só raramente foi projectado, permanecendo quase desconhecido e pouco referenciado em termos de história do cinema. O seu realizador, Joaquim Lopes Barbosa (1944-) nasceu no Porto onde, desde os 15 anos, esteve ligado ao Cine-clube local. Aos 23 anos mudou-se para Luanda e três anos depois instalou-se em Moçambique após aceitar um convite para trabalhar no cinema. Questionado pela revista Plateia, no início de 1972, sobre o que representava o cinema para si, respondeu que “a 7ª Arte é uma forma de expressão das realidades concretas, que sinto, e deviam chegar a todos, como uma espécie de murro no estômago. Actualmente, a definição que dou ao cinema é a de que deve ser uma frente de guerrilha, actuando o mais positivamente possível, contra os tabus, as morais duvidosas e os lugares-comuns bafientos e anacrónicos.”


Maria do Carmo Piçarra (MCP) - Quando começa a filmar, em Angola, quais são as suas referências cinematográficas?
Joaquim Lopes Barbosa (JLB) - O cinema exibido em Luanda, como nas outras cidades da província, era importado. Luanda, na época, não tinha qualquer estúdio para a produção de filmes. Logo, o único cinema que corria nas salas, era o omnipresente cinema americano, bem como o lixo produzido em Portugal, pertencente à velha-guarda. Os Fragas e os Queirogas continuavam a ser os eminentes fazedores e arautos dessa velha ordem, já anquilosada, afastada de um autêntico sentir e de um verdadeiro pensar! O que viamos na tela eram criaturas grotescas, cujo artificialismo era levado ao limite da incongruência e da falsidade. Os novos cinemas nunca haviam penetrado nos espíritos desses iluminados, autênticas putas de um regime que há muito havia subvertido tudo o que pudesse ser conotado com consciência crítica.
A par desta constatação, comecei a descobrir e a fazer a leitura, quase clandestina, de uma poética marginal de novos e revolucionários autores, criadores da verdadeira cultura angolana. Viriato da Cruz, António Jacinto, entre outros, revelavam-me aquilo que não tinha descoberto em Portugal: que havia uma arte subversiva ao serviço do homem, não só do negro, mas de todo o homem que sofre! E o português, o que habitava Portugal continental, não fugia a essa excepção como homem sofredor!
O que lá encontrei, além de propostas de uma nova arte poética, revolucionária na sua forma e fiel à verdade do seu conteúdo, estava também aquilo que, desde logo, me pareceu ser uma nova estética. A partir desse momento, desperto para essa autêntica descoberta, abrindo-se em mim o que passariam a ser as minhas verdadeiras referências culturais.
Encontrei trabalho na revista semanal Noite e Dia, onde iniciei uma colaboração regular na criação de páginas de Estética e de Crítica cinematográfica. Não podia esquecer que o cinema que me foi dado ver na infãncia era o avassalador cinema americano, que suplantava largamente em quantidade, mas não forçosamente em qualidade, outras cinematografias, como a italiana com o seu precioso Neorealismo, ou mesmo o cinema francês com a sua atrevida Nouvelle Vague, ainda a magia encantatória do Cinema Novo brasileiro, e foi isso que verti para as páginas da Noite e Dia.
Simultaneamente, o cineclube de Angola avançava alguma película em superoito milímetros para O Regresso, que viria a realizar sobre a vivência dum pintor de quadros artesanais, centrado na Ilha de Luanda. O filme era um documentário-ficcionado e não tinha diálogos.
Entretanto, estreava em Luanda o execrável Zé do Burro, primeiro filme inteiramente produzido em Lourenço Marques, realizado por Eurico Ferreira, tendo como produtor Courinha Ramos. Passando ao lado das imperfeições técnicas e do artificialismo burlesco do tema, o filme era uma autêntica lástima. Tinha o mérito de me revelar que, ao contrário de Angola, Moçambique já possuía laboratórios e maquinaria suficiente que lhe permitia produzir cinema. Vi-me convidado pelo Eurico Ferreira a acompanhá-lo e a integrar a sua equipa, o que aconteceria pouco tempo, tendo iniciado, nos estúdios da Somar Filmes, a minha futura e decisiva aprendizagem técnica cinematográfica.
MCP – Como conheceu o obra de Honwana? O livro dele era uma referência anti-colonial?
JLB – Quando o li, em Lourenço Marques, chamou-me imediatamente a atenção o conto Dina que identificava a mesma temática do Monangamba que havia descoberto em Angola. A força dessas imagens, a subvida, elevada ao coeficiente máximo da brutalidade que elas invocavam - tanto no poena como no conto - eram absolutamente irredutíveis. O que propunham era arrasador, enquanto tema de sofrimento, de angústia, de subjugação.
MCP – Como é que o Lopes Barbosa, recém-chegado a África, se torna tão sensível a essas temática e estética africana?
JLB – Se excluirmos os movimentos guerrilheiros - nascidos após a recusa de Salazar em abrir janelas de diálogo para uma progressiva emancipação dos povos colonizados que eles (guerrilheiros) representavam - que partem finalmente para a luta libertadora na década de sessenta, os séculos anteriores testemunham seres permanentemente marginalizados, tiranizados e submissos. O negro sempre foi um ser humano ostracizado e condenado irremediavelmente à submisão e à escravatura. E o português, apesar de poder ser visto como um homem diferente, no fundo e ao longo dos mesmos séculos, acaba por ser muito parecido com o homem que escraviza.
Se excluirmos as elites, todo o homem português é um homem sofredor! No momento da partilha do saque, da conquista, da exploração levada a cabo por si nesse acto, o homem comum nada mais garante dessa partilha do que migalhas, que o manietam permanentemente na pobreza. Portanto, o homem-pobre-negro e o homem-pobre-branco têm tudo em comum. Só os distingue um detalhe: um pega finalmente em armas para se revoltar e o outro renuncia à revolta. O português-pobre-escravizado não consegue ver em si a escravatura encoberta que o mantém fiel ao escravizador. E essa dependência, essa cegueira, é afinal o que o perde.
O meu projecto de cinema impossível de distinguir em Portugal continental torna-se visível em África. É lá que encontro as coordenadas que são praticamente invisíveis em Portugal. A pobreza encoberta, envergonhada e não assumida em Portugal, surge com toda a sua clareza nas colónias. Apesar dos portugueses aparentemente se terem tornado bem sucedidos e habitarem as cidades de cimento, a grande maioria continua dependente das entidades empregadoras, logo o seu estatuto continua a ser o de assalariado, empregado, contratado, com rendimentos praticamente no limite da sobrevivência, ou pouco mais! A coroar e a esbater a crueldade dessa realidade, está o baixo nível escolar que torna praticamente impossível interiorizar a revolta. O português-branco-pobre não entende a revolta porque não entende a sua escravatura (moral, intelectual, educacional).
O que Deixem-me ao menos subir às palmeiras… pretende é dar as pistas que permitam levar o escravo à revolta. O que o filme quer dizer é que é preciso lutar para se obter a libertação e que sem a revolta não se avança para a liberdade. Olho por olho, dente por dente! Nada de pactuar, (não à submissão) com o acto de ofender, de magoar, de desrespeitar, de desigualar O escravo não existe; o que existe é a incultura que o torna escravo. É preciso abandonar o escravizador deixando-o sozinho para não ter quem mais escravizar. O plano final do filme, com o Djimo a sair para a estrada, quer dizer exactamente isso. Também quer dizer que, talvez no futuro volte, para novamente voltar a combater possivelmente com novas armas!
MCP – Dina é em si muito cinematográfico. Que adaptações procurou introduzir no guião para viabilizar o filme?
JLB – O tema central do filme continua a ser o abuso do capataz sobre Maria. No entanto, no filme, esse abuso vai gerar aquilo que, do meu de vista, é fulcral na narrativa fílmica: a revolta dos trabalhadores-escravos. Enquanto que no livro os trabalhores incitam o pai de Maria à revolta e ele não o faz, no filme eles têm essa liberdade. E essa posição é determinante porque é a partir dessa tomada de consciência que uma consciência maior se estabalece: o escravo finalmente quebra as correntes que o manietam na servidão. E, além de se revoltar, Djimo parte.
MCP – A opcção de transformar o capataz branco em negro, bem como de pôr os colonos a falar em inglês enquadrou-se nessa procura de viabilização, creio. Confirma? No entanto, no seu filme os trabalhadores revoltam-se, o que não sucede no conto do Honwana, menos explícito... Não receou logo que essa mudança sua condenasse a obra à invisibilidade, à impossibilidade de ser projectada? Porque o filmou ainda assim?
JLB - O filme não fazia sentido sem essa revolta. Era preciso acrescentar aquilo que no conto só está esboçado. Do meu ponto de visto, essa revolta actualiza o momento histórico que se vivia na época e que o Honwana deixara omisso. Quanto às cedências que tive de fazer, transformando o capataz branco em negro e a colocar o grande machambeiro a falar inglês, penso que não retirou ao filme a carga dramática dessas relações de trabalho. Pelo contrário, mantinham-se intactas e, de igual modo, continuavam subjacentes nas relações de produção existentes nessa típica estrutura produtiva colonial (portuguesa e não só). Ao invés de fechar, abriu-lhe o leque de leituras, universalizando esse conflito de classes.
As consequências desse atrevimento provocador, na altura, não as interiorizei devidamente. Estava esperançado que, com a mudança exterior dessas figuras-personagens, podia “tapar os olhos aos censores” e viabilizar o filme quanto à sua divulgação pública em Moçambique. Aí enganei-me. Os censores não se deixaram enganar e reconheceram imediatamente no inglês e no capataz-negro agentes-chave da economia produzida pelos portugueses nas suas colónias. E o filme foi proíbido.
MCP - Acreditou que o filme pudesse vir a estrear? Porquê? Por causa da suposta maior brandura da censura em moçambique?
JLB – Essencialmente pela aderência de Courinha Ramos ao regime. A Somar Filmes era uma produtora de filmes ao serviço do governo colonial. Nela nasciam todas as semanas jornais de actualidades em que a propaganda ao regime era o único conteúdo. Pensei que essa ligação e servilismo poderiam atenuar, ou mesmo, viabilizar a divulgação do filme. Mas o peso das imagens falou mais alto e não contornou a barreira de manter, a todo o custo, invisível a realidade vergonhosa das relações de trabalho e da submissão impostas ao negro.
MCP - Em que locais foi rodado o filme? Foram necessárias autorizações? Como resolveram essa questão da produção?
JLB – O filme foi praticamente rodado nos arredores de Lourenço Marques - mais concretamente em Umbeluzi, num espaço de trabalho do governo, a estação agronómica - com excepção das imagens da plantação do sizal que foram obtidas na Zambézia e o enterro de Madala que é reconstituído em Matalane, terra natal de Malagatana. Sobre as autorizações de rodagem simplesmente não as pedimos. O nome de Courinha Ramos era suficiente para garantir que a rodagem decorresse sem sobressaltos de maior.
No entanto, parece que a presença de Malangatana no elenco despertou desconfiança e fomos chamados os dois à PIDE. Tivemos de mentir sobre a verdadeira natureza das filmagens, invocando o nome de Courinha Ramos como garante de que, o que estávamos a filmar, se inseria na normalidade de tudo quanto se fazia, em matéria de cinema, na Somar. Mas o Courinha Ramos não sabia muito exactamente o que eu estava a filmar, uma vez que não lhe tinha passado o guião para leitura. Penso que o nunca ter levantado qualquer obstáculo à rodagem do filme deveu-se grandemente à sua desatenção sobre as verdadeiras implicações que o tema levantava.
MCP – Porquê a opção de fazer um filme falado em ronga?
JLB – Um filme daquela natureza só podia ser filmado num dialecto africano. Primeiro, porque lhe dava maior autenticidade; segundo, tal como eu gostaria, se fosse visto por africanos, o seu público principal, a sua mensagem não se perderia.
MCP – Qual o contributo que os actores deram na concepção do filme, da definição da temática e estética africanas?
JLB – O filme estava todo na minha cabeça. Os actores - gente normal, apanhada aqui e ali - só tiveram de vestir a sua pele para viver os papéis da sua própria vida. Inclusivé os figurantes, que aparecem nas cenas rodadas na machamba (em Umbeluzi), são presos de delito comum que vinham da prisão, diariamente, prestar serviço na estação agronómica. Só tive que os aproveitar. Estavam simplesmente a representar e a repetir o que faziam no seu dia-a-dia, que não era em nada diferente do que se fazia em qualquer machamba da colónia. Há imensas imagens captadas em Cinema Directo, que acabei por misturar com as ficcionadas, e que em nada se diferenciavam umas das outras.
Sobre os actores, escusado será dizer que ninguém recebeu um centavo pela sua participação no filme. Malangatana tinha-se encarregado de instruir e de explicar o que se pretendia com a feitura do filme.
MCP - Que papel teve Malangatana Valente?
JLB - O papel de Malangatana foi decisivo para angariar todas as vontades pela parte do elenco negro e para a sua adesão ao filme. Através do seu empenho, tive a participação de actores, músicos, poetas e gente anónima (toda a reconstituição do enterro de Madala), que deu o seu contributo desinteressado para que a sua realização fosse possível. O elenco dos actores brancos foi conseguido através de contactos informais, uns feitos pelo Courinha Ramos, outros feitos por mim junto dos meus próprios amigos.
MCP - O parto com que se inicia o filme? Que simboliza?
JLB – O filme centra-se em dois limites: o nascimento e a morte do negro trabalhador. Com essas cenas queria expressar o que, historicamente, sempre havia sido a herança desse homem: o vazio da esperança. Daí o lamento - Deixem-me ao menos subir às palmeiras, já que lhe está vedado qualquer outro destino. É a tragédia assumida por sucessivas gerações que só a luta e a revolta podem destruir.
O ritual do enterro de Madala é o epílogo lógico dessa impossibilidade histórica: nascer e morrer sem outro horizonte que não seja o derrube permanente da sua humanidade.
A ordem das coisas não se altera sem luta: resta ao “homem-sofredor” abrir os olhos à esperança e partir para a revolução.
MCP – Após a rodagem do filme, quando percebeu que o filme não ia poder ser visto?
JLB – Penso que, após a visualização por parte dos censores, o filme ficou condenado. Eram demasiadas as propostas que o filme encerrava! Habituados à quietude e ao cinema inofensivo, os censores do regime jamais pensariam poder estar ali um filme diferente de tudo que até ao momento havia saído da Somar.
Penso que as implicações e o alcance do seu conteúdo apanharam igualmente desprevenido o Courinha Ramos porque a sua reacção imediata foi despedir-me.
Hoje penso que, na altura, se nada me aconteceu foi porque, após o meu despedimento, embarquei imediatamente para Lisboa por entender que a minha presença em Moçambique estava ameaçada e podia vir, inclusivé, a ser preso. No entanto, antes de embarcar, ainda tentei apoderar-me a cópia do filme e trazê-la comigo para Portugal. Alguém me persuadiu a não fazer tal loucura! Dada a correlação de forças não tive outra hipótese senão ceder!
Consumava-se assim uma audácia muito fora do comum e demasiado provocadora para poder ser tolerada, ou mesmo aproveitada por a gente do regime, habituada à quietude e à passibidade dos fazedores da cinematografia oficial.
MCP - Que fez o Lopes Barbosa após o despedimento e até ao 25 de Abril?
JLB – Procurei emprego em Lisboa, no sector da cinematografia, que não consegui encontrar. Como alternativa, fiz outros trabalhos que me permitiram sobreviver. Nessa altura dá-se um acontecimento que viria a marcar irremediavelmente a minha vida: a manifestação dum princípio de tuberculose que me apanha em pleno golpe de estado do 25 de Abril. Essa doença obriga-me a regressar à minha cidade natal onde procuro guarida na casa de minha mãe para um tratamento que se irá prolongar até Agosto de 1974.
Apesar de doente, faço contactos com Moçambique e combino com Courinha Ramos um encontro em Lisboa para a exibição do filme. Na posse do negativo que Courinha Ramos trás, fazem-se, na Tobis, duas cópias - uma em 35 mm e outra em l6mm - partindo o produtor novamente para Lourenço Marques e levando consigo a cópia em 35mm. A sua intenção era preparar a estreia em Moçambique. Com a cópia de 16mm em meu poder organizo a primeira exibição pública na Escola Superior das Belas Artes do Porto, enquanto preparo o regresso a Lourenço Marques que virá a acontecer no mês seguinte, Setembro. Mal desembarco informam-me que o filme já tinha sido estreado e rapidamente retirado do cartaz por a sua estreia ter coincidido com os acontecimentos do 7 de Setembro e o produtor, temeroso de poder dar origem ao desencadeamento de acções violentas por a temática apresentada ser uma clara denúncia do regime que agora chegava ao fim, resolvera pura e simplesmente arquivar o filme na gaveta do esquecimento... para sempre! Restava-me a possibilidade de exibi-lo no formato de 16mm. Organizo exibições paralelas no cineclube de Lourenço de Marques e Cadeia da Machava.
Inesperadamente, um vez que tinha interrompido o tratamento antituberculoso, sou acometido por um colapso nervoso, seguido de esgotamento nervoso e posterior depressão nervosa. Arrasto-me - é o termo - para Portugal em Maio de 1975, deixando para trás um convite, para me manter em Moçambique, que parte de pessoas ligadas ao novo poder politíco de transição, o qual não posso aceitar dadas as minhas condições de saúde. Refugio-me no Porto para um tratamento psicoanalítico que se manterá por vários anos. E inicio uma travessia do deserto que irá durar 20 anos.
De 1976 a 1977 assino um contrato com o Instituto de Tecnologia Educativa e integro-me, como operador de camâra na equipa que transmite diariamente as lições da tele-escola. Depois disso é o desemprego. Nessa altura resolvo escrever uma carta a Luis Bernardo Honwana que ocupava, penso, um cargo de ministro, oferecendo-me para voltar a Moçambique e dar o meu contributo no desenvolvimento da cinematografia nascente moçambicana. Mas não obtive qualquer resposta! Não faço ideia se a carta chegou ao destino! Pouco tempo depois, inesperadamente, sou procurado em minha casa, no Porto, pelo Pedro Pimenta, pertencente ao Instituto Nacional de Cinema (INC) que se desloca a Portugal com o propósito de comprar uma cópia do Deixem-me ao menos subir às palmeiras… que não existe. Entrego-lhe, sem custos, a cópia que tinha ficado em meu poder, no formato de 16mm. Sobre o meu possível regresso a Moçambique, nada é avançado. Penso que não estava mandatado para negociar esse aspecto particular, partindo do princípio que conhecia a minha tentativa junto do Honwana manifestando-lhe o meu interesse em voltar!
Logo a seguir, Camilo de Sousa aborda-me, informalmente, tentando saber se estava interessado em assinar um contrato de cooperante com o INC. Mas, nesse meio tempo, a minha saúde havia-se degradado e resolvo não aceitar o convite. Sentia que não estava nas melhores condições, tanto físicas como psíquicas, para dar a minha melhor contribuição. Posteriormente foram-me chegando notícias que, usando a cópia que lhes facultei, o filme era exaustivamente exibido em Moçambique.
MCP - Como define o modo como foi integrado no Cinema Novo português? Considera que, genericamente, foi posto à margem pela elite dominante – refiro-me a cineastas, críticos e historiadores de cinema?
JLB - Sim, completamente, com a excepção do José de Matos-Cruz que acompanhou um bocado o meu “penar” pelas ruas de Lisboa, sempre que lá ia, na esperança de poder abrir portas. Nenhum dos projectos que meti no Instituto Português de Cinema para o financiamento fílmico de novas obras foi aprovado. Um deles era o “Mayombe”, de Pepetela. Constatei na altura que mexer nas feridas coloniais continuava a ser um problema difícil de ultrapassar.
MCP - No Deixem-me ao menos subir às palmeiras... há uma enorme influência do cinema soviético. Porquê esta opção quando procurou uma estética que fosse entendida por um público africano?
JLB – Na África sobre administração Portuguesa, até à década de sessenta, o cinema era inexistente. Os colonos, e muito menos os africanos, jamais haviam produzido qualquer tipo de obra cinematográfica (com excepção dos jornais de actualidades e os documentários de propaganda). Quando se abriu a possibilidade de realizar o Deixem-me ao menos subir às palmeiras… compreendi que a estética que mais se adequava às imagens que queria filmar teria forçosamente de passar pelos clássicos do cinema. Essa era a escola que iria permitir uma leitura do filme por um público iletrado, como era o caso do africano. Quem não compreende a força das imagens de O couraçado Potemkine e a sua gramática? Pudovkin também me havia ensinado como escrever um argumento que não fosse complicado de entender. Inclusivé, os públicos-alvo a quem os filmes se destinavam estavam muito próximos. É óbvio que não queria de maneira nenhuma imitar Eisenstein nem tinha recursos materiais para tal coisa. O que estava em causa era conseguir fazer um filme que pudesse ser sentido e percebido principalmente pela articulação e composição das suas imagens - se desligássemos o som, a intenção era conseguir o seu entendimento integral. Penso que isso foi conseguido.
MCP – O projecto de fazer um filme de estética africana e para um público africano antes da independência de Moçambique é absolutamente singular. Pode explicar como surgiu essa vontade?
MCP – Fundamentalmente por raiva. Estava farto da porcaria que se fazia em Portugal em matéria de cinema. Havia muito oportunismo e comiseração por parte das várias gerações envolvidas na feitura dos filmes. Obras como aquelas que haviam sido produzidas nas décadas de cinquenta e sessenta sob a égide do Estado Novo, bem como, (algumas, para não dizer muitas...) que traziam a chancela do Cinema Novo, eram intoleráveis pelo seu artificialismo e pretensiosismo bacoco, que só servia para alimentar os egos dos seus autores! Era preciso coragem para romper com a produção dum cinema acomodado à facilidade intelectual e aos vazios dos seus conteúdos.
A finalizar, e em termos de remate, impunha-se dizer: “Perdoai-lhes senhor por aquilo que fizeram no passado...”
Neste caso particular,gostaria de dizer: “Mexei Senhor nas consciências de quem tem poder de decisão e capitais suficientes em Portugal ou em Moçambique que me permita ser apoiado novamente para fazer um novo filme! Obrigado.”