sexta-feira, 21 de novembro de 2008
"NON" ou a Vã Glória de Mandar
Non ou a Vã Glória de Mandar
África. Últimos dias antes do 25 de Abril de 1974. Uma viatura desloca-se e nela alguns oficiais de baixa patente conversam sobre a guerra que fazem, sobre patriotismo, sobre aqueles que deram o salto para não estar ali e também sobre o que é que Portugal fez de bom pelos povos que colonizou. O tenente Cabrita, estudante de História com o curso interrompido pela guerra, diz que só é bom aquilo que se dá. O que Portugal deu ao mundo foram os Descobrimentos de Quinhentos, que permitiram alargar horizontes culturais. Nada mais do que isso.
A conversa, que continua pelo entardecer, já no acampamento, é pretexto para evocar Viriato, o líder dos lusitanos que não podia ganhar contra o império romano mas que na sua resistência e esperança não tinha consciência de estar a lidar com as raízes do que viesse a ser um povo e um território, delimitado claramente por fronteiras.
O surgimento de Portugal funda-se nas cruzadas - nesse movimento dos filhos segundos da nobreza francesa que veem ajudar o Rei de Castela na expulsão do Infiel da Península. O Condado Portucalense não chega para D. Henrique e para o seu filho, D Afonso Henriques, o qual há-de alargar limites. O território português define-se; as suas fronteiras são as mais antigas da Europa.
Mas a ambição de as alargar manteve-se, sempre. E, se a Ocidente, o mar era o limite, que o Cardeal Dom Henrique desafiou, havia as terras de Castela, para o interior da península. Cresceu o sonho de união ibérica com capital em Lisboa... Para sul, estava Marrocos e a guerra santa, aos muçulmanos, oferecia pretexto para a conquista cristã. D. João II de Portugal, consolidou a presença portuguesa em África mas o seu projecto de união ibérica, que procurou realizar por via do casamento de seu filho único legítimo, Afonso, com Isabel, filha dos Reis Católicos terminou com a morte acidental do Infante. Foi o princípio da morte do Príncipe Perfeito, que esteve na origem do Tratado de Tortesilhas e deu lastro à expansão iniciada pelo seu tio-avô, Cardeal D. Henrique. Se o reinado de D. Manuel é de consolidão dos Descobrimentos, o de D. Afonso III é de pausa no desejo de expansão imperialista e de consolidação da presença no Brasil. Ao rei que viu morrer dez filhos e seis irmãos sucedeu o Desejado, D. Sebastião. As duas grandes paixões deste último foram a guerra e a religião. Nunca cuidou de reinar e endividou Portugal pelo sonho de conquistar toda a Berbéria e chegar à Palestina, para reconquistar Jerusalém. Alcácer Quibir - para onde arrastou um enorme exército que incluia soldados e mercenários, bêbados e maltrapilhos e que não soube liderar - arrasa a ambição de um Quinto Império, que duraria mil anos e seria um reinado de paz sobre a égide do catolicismo.
É um filme de conteúdo, o de Oliveira. A forma, cinematográfica, serve a projecção desta reflexão, humanista, crítica - que rejeita o discurso do Estado Novo sobre o desenvolvimento que Portugal terá levado aos povos africanos, nomeadamente -, evocando para tal episódios centrais da formação de um país que quis globalizar-se; criar o Quinto Império. Neste filme há duas sequências-chave. Alinhando-se ao lado das sequências de morte e destruição pela guerra de "Kagemusha" e "Ran", de Kurosawa, impõe-se aquela em que, após o descalabro em Alcácer Quibir, um guerreiro anónimo (Ruy de Carvalho) cita o Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, do Padre António Vieira, antes de suicidar-se com a sua espada:
Terrível palavra é um non. Não tem direito, nem avesso; por qualquer lado que a tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é non. Quando a vara de Moisés se converteu naquela serpente tão feroz, que fugia dela por que o não mordesse, disse-lhe Deus que a tomasse ao revés, e logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha. O non não é assim: por qualquer parte que o tomeis, sempre é serpente, sempre morde, sempre fere, sempre leva o veneno consigo. Mata a esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males. Não há corretivo que o modere, nem arte que o abrande, nem lisonja que o adoce. Por mais que confeiteis um não, sempre amarga; por mais que o enfeiteis, sempre é feio; por mais que o doureis, sempre é de feno. Em nenhuma solfa o podeis pôr que não seja malsoante, áspero e duro. Quereis saber qual é a dureza de um não? A mais dura coisa que tem a vida é chegar a pedir, e, depois de chegar a pedir, ouvir um não.
Finalmente, a morte do Alferes Cabrita, em 25 de Abril de 1974, esvaindo-se em sangue durante um delírio de morfina em que lhe surge D. Sebastião, chegado ao Cais das Colunas. Quando empunha a espada, das suas mãos escorre-lhe o sangue pela lâmina. Esvaído em sangue, Cabrita, memória histórica desse combate sem final feliz possível - sempre contrariado por um non, morre entre estropiados, mais um na longa sequência de mortes engendradas nesse desejo da "vã glória de mandar". A Revolução dos Cravos não podia ser de outro modo, depois de uma sangria que durou séculos...
quinta-feira, 12 de junho de 2008
Missão Botânica - Missão Académica a Angola - 1927-1937
"Em 1927, o Professor Luíz Carrisso iniciou a primeira de três explorações extensivas da paisagem e flora africana, que culminaram com a sua morte no ano de 1937, em pleno deserto de Moçamedes. Destas viagens, resultaram materiais tão diversificados e abrangentes quanto o seu real valor museológico. Fotografias, filmes, objectos etnográficos, colecções de herbário, produzidos nos anos 30 sob o regime do Estado Novo, são os elementos que, por ocasião do septuagésimo aniversário do seu falecimento, integram a presente edição.
Missão patriótica assente no princípio de “ocupação científica” do território africano aliou o poder da imagem, comummente associada ao domínio da representação estética, à política enquanto instrumento de conquista territorial.
Desejo de classificação, de ordenação, de domesticação de um mundo, que então se afigurava como um outro - sempre outro - espaço caótico e ilegislado.
Imagem constitutiva de uma outra ordem, que pretende inscrever a ideia de identidade nacional num vasto império ultramarino.
A desconstrução da relação entre saber e poder, os tipos de discurso e a sua vinculação ao modelo propagandístico e colonizador.
Os lugares, as plantas e as pessoas comuns, o extraordinário vínculo que os une e que nos une.
E o infigurável esquecimento."
Luíz Carrisso e as suas missões botânicas a Angola
Os materiais recolhidos por estes investigadores - que à sua época falaram em "colonialismo científico" em Portugal - abrem-se agora à leitura dos investigadores contemporâneos. Além das leituras que podem suscitar, a natureza do diálogo que se pode estabelecer é fascinante mas não isenta de uma irritação que por vezes agasta quem lê, olha e é confrontado com a narrativa da Propaganda. Dizemos nós após a leitura e a visão que nos oferece "Missão Botânica Transnatural", que, em 2007 - e para assinalar os 70 anos do desaparecimento do cientista da Figueira da Foz - Paulo Bernaschina publicou na Artez.
sexta-feira, 28 de março de 2008
Cinema: Uma Visão da História
Nos anos 70 do século XX Marc Ferro relevou o olhar do cinema sobre a História constantando que a História no cinema reproduz frequentemente as correntes de pensamento dominantes ou as que põem estas em causa. Promovido o cinema a objecto como forma narrativa emblemática da fragmentação da memória colectiva, a estrutura fragmentária, as truncagens, a veiculação de conteúdos controlados e de textos oficiosos não impuseram facilmente as actualidades cinematográficas à análise. Até ao início da década de 90 do século XX, a investigação sobre elas permaneceu incipiente. "De maneira que a história-narração construída com estas actualidades permanece, a muitos olhos, suspeita, ainda que ela seja a única a poder ensaiar a criação de uma narrativa coerente sobre um problema de conjunto, sobre uma fase da história deste século (...)", constatou Ferro em "Cinéma, Une Vision de L´ Histoire" (Ferro, 2003, p.9).
A grande utilização pelos sistemas de propaganda e como produção de prestígio pelas majors torna, porém, a análise deste género incontornável. Após a realização de alguns trabalhos percursores – de Raymond Fielding, nos EUA, e de Anthony Aldgate na Grã-Bretanha – muitas investigações foram entretanto empreendidas. O estudo do NO-DO, em Espanha; das Actualités Françaises, do Cine Jornal Brasileiro, do Jornal Português (feito por mim e que resultou na publicação de "Salazar Vai Ao Cinema"), entre outros, inscrevem-se numa tendência forte. Tal vem também questionar/complementar o modelo internacional dominante - que observa uma história do cinema em que a ficção é o sustentáculo da produção - que não se aplica ao cinema português anterior ao 25 de Abril.
quinta-feira, 27 de março de 2008
Feitiço do Império
No final da década de 30 do século XX, a Agência Geral das Colónias patrocinou a "Missão Cinegráfica (não é gralha) às Colónias de África", chefiada pelo Major Carlos Selvagem, a qual teve como director artístico António Lopes Ribeiro, então no princípio da sua carreira como cineasta do regime.
Do material filmado durante a missão montaram-se posteriormente vários documentários que ainda conto ver no ANIM. Algumas imagens de grande interesse foram incluídas no "Feitiço do Império". Trata-se do segundo dos dois únicos filmes de propaganda assumida pagos pelo Estado Novo.
O primeiro, "A Revolução de Maio", era a história de um comunista que se rendia ao amor de uma menina da pequena burguesia e à mística de Fátima, rendendo-se depois também aos nobres ideiais da Pátria, que é como quem diz, de Salazar.
Já "Feitiço do Império" conta a história de um luso-descendente que vive nos EUA e está prestes a trocar a sua nacionalidade pela norte-americana. O pai convence-o a conhecer Lisboa, que ele nunca viu, e a pequenez da cidade não o cativa. Mas quando desembarca na Guiné, e depois em S. Tomé e em Angola, tudo muda. Claro que há mais uma paixão a ajudar. Uma menina que lhe recusa um beijo por não se tratar de coisa de nada para uma portuguesa que se preze.
O filme sobreviveu amputado, sem a primeira bobina - os primeiros 15 a 20 minutos - e sem banda sonora. E nem o enredo nem as actuações são em molde a resgatar a obra. Mas as imagens de África - as imagens documentais, em que a câmara se limita a olhar a realidade que se deixa olhar - são extraordinárias. Voltaremos a elas com detalhe.
domingo, 16 de março de 2008
Da natureza das imagens
Portugal não teve uma produção muito intensa. Não podia ser de outro modo porque a escassez de actualidades é quase correlativa à escassez de filmes de ficção.
No entanto, houve fases em que pela sua regularidade - no caso das Imagens de Portugal - ou mesmo pela escassez relativa da produção ficcional - no caso do Jornal Português - se afirmaram como incontornáveis na propaganda do Estado Novo e como fontes para uma percepção das representações pelo regime.
Quando defini o meu objecto ainda encetei um esforço para encontrar imagens de natureza etnográfica de produção nacional. Espero chegar lá um dia. Entretanto, as de Jean Rouch, impõem-se, com toda a sua vibração.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
Memorial Fílmico
A análise que faremos desta representação basear-se-à no visionamento, no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, da série de actualidades cinematográficas"Imagens de Portugal" (1953-1971), e será complementada com o visionamento de documentários de propaganda. Será também articulado com o nosso conhecimento da série "Jornal Português" (1938-1951). Empreender-se-à ainda o confronto dessa representação com aquela traduzida por olhares disruptivos em filmes de ficção de autor, amputados pela Censura.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
Apresentação de "Salazar vai Ao Cinema" por João Lopes
“Vi-me na televisão. Estou velho e, o que é pior, pareço velho. Nunca tive a voz muito firme; agora, está uma lástima. Aquela caixa pequena ainda é mais cruel do que o espelho. Ao enfrentá-lo, estamos vigilantes e mostramos de nós próprios o que pretendemos ver. Na televisão, só em parte é assim; não expomos apenas os ângulos que escolhemos. Daqui em diante mandarei lá ministros bem apessoados para que transmitam uma imagem favorável do Governo. Eu só voltarei em circunstâncias excepcionais. Quanto às reportagens, podem ser trabalhadas. Segundo me contam, não é difícil”.
São palavras paradoxalmente obscuras e luminosas, suaves e violentas. Dão conta de uma resistência individual às imagens e, ao mesmo tempo, reconhecem nessas mesmas imagens uma função pública precisa, certamente indissociável do colectivo social, dos seus movimentos, conflitos e valores.
Curiosamente, se é verdade que Salazar mostrava reticências, ou mesmo desprezo, pela possibilidade de se mostrar em televisão, não é menos verdade que a sua presença no cinema foi objecto de uma estratégia precisa, em grande parte estabelecida sob a égide de António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional.
Ora, o livro de Maria do Carmo Piçarra, “Salazar Vai ao Cinema”, é um objecto pacientemente didáctico e genuinamente histórico, um livro para compreendermos um pouco mais dessa inquietação que continua a acompanhar-nos e, em muitos aspectos, a questionar-nos – é a questão das relações do Estado Novo com as imagens e, em particular, das relações de Salazar com o cinema.
Trata-se, aliás, de um livro com um título de irónica ambiguidade: “Salazar Vai ao Cinema”.
Isto porque, de facto, o seu tema nuclear é a presença de Salazar nas salas de cinema em Portugal, concretamente através das 95 edições das actualidades cinematográficas que receberam o nome “Jornal Português” e que, entre 1938 e 1951, foram financiadas pelo Secretariado da Propaganda Nacional, com direcção e realização a cargo de António Lopes Ribeiro. Quer isto dizer que o regime aproveitou o modelo então corrente das actualidades para promover a imagem do seu líder e a sua direcção do país.
Ao mesmo tempo, o título “Salazar Vai ao Cinema” envolve uma contradição essencial e, no limite, estrutural – contradição de Salazar, enquanto líder político, e contradição também do regime que, a partir de certa altura, por assim dizer, se entronizou na sua própria figura. Essa contradição nasceu de uma crescente resistência às imagens e, em particular, às imagens de cinema.
De facto (e simplificando muito, como é óbvio), pode dizer-se que a história visual e iconográfica do regime salazarista evoluíu a partir de uma tensão que nunca foi resolvida. Em primeiro lugar, a dinamização dos estúdios da Tóbis, logo nos primeiros anos do Estado Novo, tentou dar consistência a uma prática do cinema em que a componente de propaganda coexistisse com um sentido peculiar de entretenimento e cinema popular. Depois, foi-se instalando um crescente vazio figurativo, tanto do regime como do seu líder, vazio que, pelo menos em parte, poderá ajudar a explicar a decadência da produção cinematográfica ao longo da década de 50 – esse vazio seria bruscamente dramatizado com a eclosão da guerra colonial, no começo dos anos 60, e também com a passagem a uma nova idade visual, ou audiovisual, a idade da televisão.
O livro de Maria do Carmo Piçarra é, antes do mais, eminentemente informativo. E aqui importa fazer uma ressalva, sobretudo para os que possam julgar que essa carga de informação menospreza a elaboração de um ponto de vista.
De facto, não é isso que acontece, pela simples razão de que o primeiro e decisivo ponto de vista de “Salazar Vai ao Cinema” é que continuamos a conhecer pouco – e, por vezes, a conhecer mal – o sistema de relações entre Salazar e o cinema, o cinema e o Estado Novo, o Estado Novo e o imaginário cinematográfico da época.
Daí que este seja um livro que nos permite revisitar um tempo que, de facto, cada vez mais, importa libertar de muitos clichés políticos ou morais, construídos à esquerda e à direita, e que com frequência nos impedem um conhecimento real e exigente da complexidade factual – e também da rede simbólica – que, de uma maneira ou de outra, sustentaram uma ditadura de 48 anos.
Nesse aspecto, não queria deixar de referir o modo como “Salazar Vai ao Cinema” acompanha de forma muito cuidadosa o trabalho de um cineasta como António Lopes Ribeiro.
Nascido em 1908 e falecido em 1995, Lopes Ribeiro é um daqueles nomes muitas vezes tratado a partir de uma retórica descritiva profundamente redutora. Não por todos, como é óbvio – e lembro, por exemplo, que a sua obra já foi objecto de uma esclarecedora retrospectiva, aqui mesmo, nesta casa. Falo, sobretudo, dessa espécie de conhecimento “universal” (universal entre aspas, claro) que tende a reduzir tudo e todos a imagens de marca de enorme simplismo e até, por vezes, de enorme agressividade. Basta lembrar os clichés que circulam sobre a obra de Manoel de Oliveira – nesse sentido, talvez seja inevitável que Lopes Ribeiro seja objecto do mesmo tipo de ignorância e das mesmas grosseiras simplificações.
Ora, um dos capítulos de “Salazar Vai ao Cinema” procura, justamente, libertar a figura de Lopes Ribeiro do espartilho dos lugares-comuns. E tentando não omitir nada. Ou seja: lembrando que para compreender a sua figura é preciso convocar o propagandista do regime e o jornalista, o cineasta e o produtor, a fé em Salazar e a também a crença muito cinéfila no cinema e nas suas potencialidades expressivas.
Felizmente, “Salazar Vai ao Cinema” não é um livro isolado. Em tempos recentes, temos assistido ao aparecimento de um número muito razoável de edições, certamente diversas e contrastadas, mas que trabalham no sentido de refazer a memória do Estado Novo e, em particular, de libertar essa memória de muitas ideias feitas, umas enraizadas nos tempos do próprio regime, outras, importa reconhecê-lo, geradas, paradoxalmente, no interior da própria energia libertadora do 25 de Abril.
Resumindo, diria que “Salazar Vai ao Cinema” é um objecto que nos pode ajudar a compreender como é que Salazar e o Estado Novo foram representados pelo cinema e através do cinema – desde o registo das imagens até aos mecanismos de montagem, passando por esse momento essencial que era a inserção dos comentários em off, este é um estudo que procura, realmente, entender o cinema enquanto objecto que se fabrica, não para confirmar as aparências do real, mas para lhe conferir um sentido, porventura até para proclamar uma ideologia que quer fazer acreditar que esse real possui uma vocação e uma transcendência.
O livro de Maria do Carmo Piçarra diz-nos, afinal, que o nosso passado continua a ser uma forma particular do nosso presente. Para utilizar um velho palavrão que caíu em desuso, eu diria que isso se chama dialéctica – e que tal dialéctica nos ensina a olhar melhor para o que somos ou, se for caso disso, para o que julgávamos ser.
João Lopes
"Salazar Vai ao Cinema"
Colonialismo e cinema
Com o estatuto de bolseira da FCT posso agora dedicar-me a tempo inteiro à pesquisa iniciada em 2007 no Arquivo Nacional de Imagens em Movimento. Após o incêndio na Serra de Ossa me ter devolvido à cidade comecei o visionamento da série de actualidades "Imagens de Portugal", a segunda série que o Estado Novo pagou para fazer a sua propaganda. António Lopes Ribeiro, primeiro. Depois Perdigão Queiroga. Produziram, através de produtoras próprias e realizaram. No início da década de 60 foi a Tóbis a garantir a produção das actualidades estatais. António da Cunha Telles, em princípio de carreira, passou por lá.
A televisão já estava em pleno e, contrariamente ao que sucedeu durante a existência de "Jornal Português", por mim estudado no contexto da propaganda do Estado Novo (estudo que originou a publicação de "Salazar Vai ao Cinema", isso implicou um recuo do cinema como arma de propaganda. Mas se esse recuo se deu e tirou importância às actualidades cinematográficas - que na década de 70 deixaram de existir praticamente em todo o mundo - a verdade é que nelas se revela de modo directo o discurso do regime. São, portanto, fontes extraordinárias para olhar as representações cinematográfica do regime. Proponho-me estudar esses "azuis ultramarinos" com que o regime quis colorir a história da colonização portuguesa. Este blogue servirá de depósito das impressões e reflexões a lanço durante os quatro anos de investigação que agora inicio.
Foto: Arquivo da Cinemateca Portuguesa
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
Fado Tropical
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro Abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa"
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Desagua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
Fado tropical, Chico Buarque