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Escrito em 1948, "De Caligari a Hitler - Uma histórica psicológica do filme alemão", de Siegfried Kracauer, continua a ser uma obra chave para a compreensão dos cinemas nacionais e da história das mentalidades. Se "La Projection Nationale", de Jean-Michel Frodon (director dos Cahiers du Cinèma), é incontornável para mim, no âmbito do estudo que estou a fazer, a obra de Kracauer é uma chave para a compreensão de como o cinema traduziu disposições mentais desde o início da sua história. E tem a enorme qualidade de olhar para os filmes sem os isolar uns dos outros mas em relação, assumindo-os tal como são: fruto de uma arte colaborativa por excelência.
Fica uma pequena nota biográfica do autor. Judeu, que colaborou em revistas para onde Walter Benjamin escreveu e de quem Adorno confessou ser uma referência para o seu pensamento, também ele teve de exilar-se nos EUA, após a subida dos nazi ao poder, e foi acolhido pela academia americana.
O que segue são apontamentos do seu pensamento.
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I. Luz e cenários.
Foi o talento dos realizadores alemães na criação de uma esfera visual - cenários impressionantes e disposição da acção com a luz adequada - que se impôs como traço característico do filme alemão entre guerras, não obstante a mudança de temas e modos de representação cinematográfica. O facto de serem macabros, sinistros, também os caracterizou mas não foi por essa via que deixaram uma marca profunda na história do cinema. O contributo dos alemães para a autonomia de movimentos da câmara também se impôs, sobretudo para os conhecedores. Mas não há nenhum especialista que não reconheça o poder organizacional operativo nestes filmes - uma disciplina colectiva contributiva para a unidade narrativa assim como para a integração perfeita das luzes, cenários e actores. Numa expressão de respeito, Hollywood contratou todos os realizadores, técnicos e realizadores que pôde. Mas também o cinema francês e o cinema russo - e este foi marcado sobretudo ao nível da iluminação - foram influenciados pelo filme alemão.
Quando escreve, em 1948, Siegfried Kracauer constata que a admiração e imitação não precisam de basear-se no respeito mútuo. E afirma que tudo o que se escreveu, eminentemente estético, sobre o cinema alemão, e as tentativas de análise das suas excepcionais qualidades e para uma compreensão dos problemas inquietantes levantados pela sua existência, lida com os filmes como se se tratassem de estruturas autónomas.
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II. Filmes Nacionais
Kracauer constata que os filmes de uma Nação reflectem a sua mentalidade de modo mais directa do que outros modos de expressão artística por duas razões:
1. os filmes nunca são o produto de um indivíduo. Kracauer evoca Pudovkin quando este enfatiza o carácter colectivo da produção de filmes identificando-o com a produção industrial e sublinhando o necessário trabalho de equipa.
2. os filmes dirigem-se à multidão anónima. Pode supôr-se que os temas cinematográficos populares supostamente devem satisfazer desejos existentes das massas. Kracauer comenta a opinião segundo a qual Hollywood oferece às pessoas filmes que estas não querem realmente, persuandido-as por via da passividade destas e através da publicidade. Mas o autor diz que não deve sobrevalorizar-se a distorção introduzida pelo cinema de entretenimento de massas de Hollywood. O manipulador depende das qualidades inerentes do seu material e até os filmes de propaganda de guerra nazi oficiais, não obstante serem pura propaganda, espelhavam certas características nacionais que não podiam ser fabricadas. Isso aplica-se com mais propriedade ainda a uma sociedade competitiva. Hollywood não pode dar-se ao luxo de ignorar a espontaneidade do público. A indústria cinematográfica, interessada vitalmente no lucro como está, tem de ajustar-se, tanto quanto possível, às mudanças do “clima mental”. As audiências americanas recebem o que Hollywood quer que elas queiram mas, no longo prazo, o público determina a natureza dos filmes de Hollywood.
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III. Filmes como reflexos de disposições psicológicas
O que os filmes reflectem não são tanto crenças explícítas quanto disposições psicológicas - essas camadas profundas da mentalidade colectiva que se desenvolvem mais ou menos abaixo da dimensão da consciência. Kracauer afirma que as revistas populares, os bestsellers, a moda, etc. também dão informação valiosa sobre atitudes predominantes, e tendências interiores. No entanto, o autor considera que o cinema excede essas outras fontes em profundidade.
Devido ao trabalho de câmara, montagem e a outros mecanismos cinematográficos, os filmes são capazes e mesmo obrigados a perscutar todo o mundo visível. Isto resulta no que Erwin Panofski definiu como a “dinamização do espaço”. “ Num cinema... só fisicamente é que o espectador tem um lugar fixo... Esteticamente, está em movimento permanente, à medida que o seu olho se identifica com a lente da câmara que muda permanentemente em distância e direcção. E o espaço apresentado ao espectador é tão móvel quanto o próprio espectador. Não apenas corpos sólidos se movem no espaço, mas o próprio espaço se move, mudando, revirando-se, dissolvendo-se e recristalizando-se...”.