segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Buala e Catembe

http://www.buala.org/pt/afroscreen/catembe-de-faria-de-almeida-em-coimbra

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Queixa da alma jovem censurada


Catembe (1965) documenta os sete dias da semana no quotidiano de Lourenço Marques. Além de Cinema Directo – usado sobretudo nas entrevistas de abertura em que Manuel Faria de Almeida pergunta a transeuntes na Baixa lisboeta o que sabem sobre Lourenço Marques –, integrou sequências de ficção protagonizadas pela mulata Catembe. Após o corte, imposto pelo Ministério do Ultramar, de 19’ dos 87’ da obra original, uma segunda versão, documental, de apenas 45’ e remontada a partir das sequências deixadas sem sentido pelos cortes efectuados, foi proibida pela Comissão da Censura. Face ao paradoxo da brutalização de um filme subsidiado pelo Fundo do Cinema Nacional, explique-se que esse apoio se enquadrou na aposta em divulgar cinematograficamente as colónias.
Catembe, a “outra banda” de Lourenço Marques, também é, portanto, nome de olhar disruptivo. Além da qualidade técnica e sensibilidade estética evidentes, o maior mérito da obra é o de propôr uma primeira interpretação crítica da realidade colonial. Não obstante o patrocínio pelo Fundo e as pressões antes da rodagem, aborda temas fracturantes: o “trabalho” (de brancos e negros), as “bifas” (e a liberdade sexual de rapazes/raparigas), o afastamento entre “intelectuais & não intelectuais”, e se há “cinema em Moçambique”. É, porém, “a poesia da outra banda”, que sintetiza a intenção do autor: revelar o esforço brutal dos negros para ganharem … quase nada.
Formatar Catembe à medida da censura era impossível. A questão fulcral foi a da diferença de olhares sobre a realidade, conhecida e questionada pelo jovem cineasta e fixada de modo conservador e enquistado pelo regime. Assim, as imagens propostas deformam o memorial fílmico constituído, sedimentado nos documentários e actualidades de propaganda, em que se baseou a representação das colónias.
Catembe figurou no Guinness Book como o filme alvo de mais cortes pela censura na história do cinema. Mutilado e censurado, além da ante-estreia para amigos em 1965, após o 25 de Abril foi mostrado apenas duas vezes na Cinemateca Portuguesa. A 27 de Novembro acontecerá, em Coimbra (mais pormenores para breve), a quinta projecção pública e, em complemento, serão exibidos 11’ dos cortes considerados perdidos que recentemente Faria de Almeida depositou no ANIM. Se a projecção é condição fundamental para que o cinema se realize, que existência teve Catembe como filme? E que futuro?

Faria de Almeida: como se perdeu um cineasta de ficção.



Membro fundador do Cine Clube de Lourenço Marques, Manuel Faria de Almeida (1934-) foi apoiado pelo Fundo do Cinema Nacional para estudar cinema na London School of Film Technique quando os seus filmes amadores começaram a ser premiados em Portugal.
O seu filme de curso Streets of early sorrow, inspirado no massacre de Sharpeville, ganhou o 1º prémio do Festival Cinestud de Amsterdão após o que fez o circuito dos cine-clubes ingleses como complemento de A dama de Xangai, de Orson Welles. Outro filme de curso, Viviana – proibido pela censura em Portugal não obstante a remontagem que o autor fez e que desvirtuou irremediavelmente o original –, foi exibido no Festival de Valladolid.
Com a melhor classificação de sempre no curso londrino de realização, é convidado para trabalhar como assistente de Tony Richardson e para ingressar no serviço de cinema das Nações Unidas. Não pode aceitar porque as condições da bolsa o obrigam a trabalhar três anos em Portugal após os estudos. É em Paris, onde estagia no IDHEC e trabalha nos arquivos da Cinemateca, que recebe o telegrama de António da Cunha Telles: “Mil parabéns. Ganhamos Catembe”. Era o anúncio que o Fundo apoiaria um projecto ambientado na capital moçambicana, que viria a ser o seu único filme de fundo.
Muito activo no movimento do Novo Cinema, Faria de Almeida obteve vários prémios com os documentários que realizou.
Foi presidente da Tobis Portuguesa entre 1974 e 1976 e do Instituto Português de Cinema, de Agosto de 1976 ao de 1977. Entrou então para o Centro de Formação da R.T.P., com o qual já colaborara e que chefiou entre 1979 e 1982. Entre 1983 e 1985 participou na criação da Televisão de Macau, onde foi director de Programas e da Formação. Novamente em Lisboa, trabalhou no lançamento da Europa TV e da RTP Internacional, tendo passado pelas Direcção de Programas e de Cooperação. É autor de várias obras sobre história do cinema e realização cinematográfica e televisiva.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Lopes Barbosa e o seu filme da "frente de guerrilha"


Deixem-me ao menos subir às palmeiras… antecipou o projecto de televisão e cinema moçambicanos que, após a independência, em 1975, o novo governo encomendou, sem os resultados esperados, a Jean-Luc Godard e a Jean Rouch. Proibido antes do 25 de Abril de 1974, nunca teve estreia comercial, só raramente foi projectado, permanecendo quase desconhecido e pouco referenciado em termos de história do cinema. O seu realizador, Joaquim Lopes Barbosa (1944-) nasceu no Porto onde, desde os 15 anos, esteve ligado ao Cine-clube local. Aos 23 anos mudou-se para Luanda e três anos depois instalou-se em Moçambique após aceitar um convite para trabalhar no cinema. Questionado pela revista Plateia, no início de 1972, sobre o que representava o cinema para si, respondeu que “a 7ª Arte é uma forma de expressão das realidades concretas, que sinto, e deviam chegar a todos, como uma espécie de murro no estômago. Actualmente, a definição que dou ao cinema é a de que deve ser uma frente de guerrilha, actuando o mais positivamente possível, contra os tabus, as morais duvidosas e os lugares-comuns bafientos e anacrónicos.”


Maria do Carmo Piçarra (MCP) - Quando começa a filmar, em Angola, quais são as suas referências cinematográficas?
Joaquim Lopes Barbosa (JLB) - O cinema exibido em Luanda, como nas outras cidades da província, era importado. Luanda, na época, não tinha qualquer estúdio para a produção de filmes. Logo, o único cinema que corria nas salas, era o omnipresente cinema americano, bem como o lixo produzido em Portugal, pertencente à velha-guarda. Os Fragas e os Queirogas continuavam a ser os eminentes fazedores e arautos dessa velha ordem, já anquilosada, afastada de um autêntico sentir e de um verdadeiro pensar! O que viamos na tela eram criaturas grotescas, cujo artificialismo era levado ao limite da incongruência e da falsidade. Os novos cinemas nunca haviam penetrado nos espíritos desses iluminados, autênticas putas de um regime que há muito havia subvertido tudo o que pudesse ser conotado com consciência crítica.
A par desta constatação, comecei a descobrir e a fazer a leitura, quase clandestina, de uma poética marginal de novos e revolucionários autores, criadores da verdadeira cultura angolana. Viriato da Cruz, António Jacinto, entre outros, revelavam-me aquilo que não tinha descoberto em Portugal: que havia uma arte subversiva ao serviço do homem, não só do negro, mas de todo o homem que sofre! E o português, o que habitava Portugal continental, não fugia a essa excepção como homem sofredor!
O que lá encontrei, além de propostas de uma nova arte poética, revolucionária na sua forma e fiel à verdade do seu conteúdo, estava também aquilo que, desde logo, me pareceu ser uma nova estética. A partir desse momento, desperto para essa autêntica descoberta, abrindo-se em mim o que passariam a ser as minhas verdadeiras referências culturais.
Encontrei trabalho na revista semanal Noite e Dia, onde iniciei uma colaboração regular na criação de páginas de Estética e de Crítica cinematográfica. Não podia esquecer que o cinema que me foi dado ver na infãncia era o avassalador cinema americano, que suplantava largamente em quantidade, mas não forçosamente em qualidade, outras cinematografias, como a italiana com o seu precioso Neorealismo, ou mesmo o cinema francês com a sua atrevida Nouvelle Vague, ainda a magia encantatória do Cinema Novo brasileiro, e foi isso que verti para as páginas da Noite e Dia.
Simultaneamente, o cineclube de Angola avançava alguma película em superoito milímetros para O Regresso, que viria a realizar sobre a vivência dum pintor de quadros artesanais, centrado na Ilha de Luanda. O filme era um documentário-ficcionado e não tinha diálogos.
Entretanto, estreava em Luanda o execrável Zé do Burro, primeiro filme inteiramente produzido em Lourenço Marques, realizado por Eurico Ferreira, tendo como produtor Courinha Ramos. Passando ao lado das imperfeições técnicas e do artificialismo burlesco do tema, o filme era uma autêntica lástima. Tinha o mérito de me revelar que, ao contrário de Angola, Moçambique já possuía laboratórios e maquinaria suficiente que lhe permitia produzir cinema. Vi-me convidado pelo Eurico Ferreira a acompanhá-lo e a integrar a sua equipa, o que aconteceria pouco tempo, tendo iniciado, nos estúdios da Somar Filmes, a minha futura e decisiva aprendizagem técnica cinematográfica.
MCP – Como conheceu o obra de Honwana? O livro dele era uma referência anti-colonial?
JLB – Quando o li, em Lourenço Marques, chamou-me imediatamente a atenção o conto Dina que identificava a mesma temática do Monangamba que havia descoberto em Angola. A força dessas imagens, a subvida, elevada ao coeficiente máximo da brutalidade que elas invocavam - tanto no poena como no conto - eram absolutamente irredutíveis. O que propunham era arrasador, enquanto tema de sofrimento, de angústia, de subjugação.
MCP – Como é que o Lopes Barbosa, recém-chegado a África, se torna tão sensível a essas temática e estética africana?
JLB – Se excluirmos os movimentos guerrilheiros - nascidos após a recusa de Salazar em abrir janelas de diálogo para uma progressiva emancipação dos povos colonizados que eles (guerrilheiros) representavam - que partem finalmente para a luta libertadora na década de sessenta, os séculos anteriores testemunham seres permanentemente marginalizados, tiranizados e submissos. O negro sempre foi um ser humano ostracizado e condenado irremediavelmente à submisão e à escravatura. E o português, apesar de poder ser visto como um homem diferente, no fundo e ao longo dos mesmos séculos, acaba por ser muito parecido com o homem que escraviza.
Se excluirmos as elites, todo o homem português é um homem sofredor! No momento da partilha do saque, da conquista, da exploração levada a cabo por si nesse acto, o homem comum nada mais garante dessa partilha do que migalhas, que o manietam permanentemente na pobreza. Portanto, o homem-pobre-negro e o homem-pobre-branco têm tudo em comum. Só os distingue um detalhe: um pega finalmente em armas para se revoltar e o outro renuncia à revolta. O português-pobre-escravizado não consegue ver em si a escravatura encoberta que o mantém fiel ao escravizador. E essa dependência, essa cegueira, é afinal o que o perde.
O meu projecto de cinema impossível de distinguir em Portugal continental torna-se visível em África. É lá que encontro as coordenadas que são praticamente invisíveis em Portugal. A pobreza encoberta, envergonhada e não assumida em Portugal, surge com toda a sua clareza nas colónias. Apesar dos portugueses aparentemente se terem tornado bem sucedidos e habitarem as cidades de cimento, a grande maioria continua dependente das entidades empregadoras, logo o seu estatuto continua a ser o de assalariado, empregado, contratado, com rendimentos praticamente no limite da sobrevivência, ou pouco mais! A coroar e a esbater a crueldade dessa realidade, está o baixo nível escolar que torna praticamente impossível interiorizar a revolta. O português-branco-pobre não entende a revolta porque não entende a sua escravatura (moral, intelectual, educacional).
O que Deixem-me ao menos subir às palmeiras… pretende é dar as pistas que permitam levar o escravo à revolta. O que o filme quer dizer é que é preciso lutar para se obter a libertação e que sem a revolta não se avança para a liberdade. Olho por olho, dente por dente! Nada de pactuar, (não à submissão) com o acto de ofender, de magoar, de desrespeitar, de desigualar O escravo não existe; o que existe é a incultura que o torna escravo. É preciso abandonar o escravizador deixando-o sozinho para não ter quem mais escravizar. O plano final do filme, com o Djimo a sair para a estrada, quer dizer exactamente isso. Também quer dizer que, talvez no futuro volte, para novamente voltar a combater possivelmente com novas armas!
MCP – Dina é em si muito cinematográfico. Que adaptações procurou introduzir no guião para viabilizar o filme?
JLB – O tema central do filme continua a ser o abuso do capataz sobre Maria. No entanto, no filme, esse abuso vai gerar aquilo que, do meu de vista, é fulcral na narrativa fílmica: a revolta dos trabalhadores-escravos. Enquanto que no livro os trabalhores incitam o pai de Maria à revolta e ele não o faz, no filme eles têm essa liberdade. E essa posição é determinante porque é a partir dessa tomada de consciência que uma consciência maior se estabalece: o escravo finalmente quebra as correntes que o manietam na servidão. E, além de se revoltar, Djimo parte.
MCP – A opcção de transformar o capataz branco em negro, bem como de pôr os colonos a falar em inglês enquadrou-se nessa procura de viabilização, creio. Confirma? No entanto, no seu filme os trabalhadores revoltam-se, o que não sucede no conto do Honwana, menos explícito... Não receou logo que essa mudança sua condenasse a obra à invisibilidade, à impossibilidade de ser projectada? Porque o filmou ainda assim?
JLB - O filme não fazia sentido sem essa revolta. Era preciso acrescentar aquilo que no conto só está esboçado. Do meu ponto de visto, essa revolta actualiza o momento histórico que se vivia na época e que o Honwana deixara omisso. Quanto às cedências que tive de fazer, transformando o capataz branco em negro e a colocar o grande machambeiro a falar inglês, penso que não retirou ao filme a carga dramática dessas relações de trabalho. Pelo contrário, mantinham-se intactas e, de igual modo, continuavam subjacentes nas relações de produção existentes nessa típica estrutura produtiva colonial (portuguesa e não só). Ao invés de fechar, abriu-lhe o leque de leituras, universalizando esse conflito de classes.
As consequências desse atrevimento provocador, na altura, não as interiorizei devidamente. Estava esperançado que, com a mudança exterior dessas figuras-personagens, podia “tapar os olhos aos censores” e viabilizar o filme quanto à sua divulgação pública em Moçambique. Aí enganei-me. Os censores não se deixaram enganar e reconheceram imediatamente no inglês e no capataz-negro agentes-chave da economia produzida pelos portugueses nas suas colónias. E o filme foi proíbido.
MCP - Acreditou que o filme pudesse vir a estrear? Porquê? Por causa da suposta maior brandura da censura em moçambique?
JLB – Essencialmente pela aderência de Courinha Ramos ao regime. A Somar Filmes era uma produtora de filmes ao serviço do governo colonial. Nela nasciam todas as semanas jornais de actualidades em que a propaganda ao regime era o único conteúdo. Pensei que essa ligação e servilismo poderiam atenuar, ou mesmo, viabilizar a divulgação do filme. Mas o peso das imagens falou mais alto e não contornou a barreira de manter, a todo o custo, invisível a realidade vergonhosa das relações de trabalho e da submissão impostas ao negro.
MCP - Em que locais foi rodado o filme? Foram necessárias autorizações? Como resolveram essa questão da produção?
JLB – O filme foi praticamente rodado nos arredores de Lourenço Marques - mais concretamente em Umbeluzi, num espaço de trabalho do governo, a estação agronómica - com excepção das imagens da plantação do sizal que foram obtidas na Zambézia e o enterro de Madala que é reconstituído em Matalane, terra natal de Malagatana. Sobre as autorizações de rodagem simplesmente não as pedimos. O nome de Courinha Ramos era suficiente para garantir que a rodagem decorresse sem sobressaltos de maior.
No entanto, parece que a presença de Malangatana no elenco despertou desconfiança e fomos chamados os dois à PIDE. Tivemos de mentir sobre a verdadeira natureza das filmagens, invocando o nome de Courinha Ramos como garante de que, o que estávamos a filmar, se inseria na normalidade de tudo quanto se fazia, em matéria de cinema, na Somar. Mas o Courinha Ramos não sabia muito exactamente o que eu estava a filmar, uma vez que não lhe tinha passado o guião para leitura. Penso que o nunca ter levantado qualquer obstáculo à rodagem do filme deveu-se grandemente à sua desatenção sobre as verdadeiras implicações que o tema levantava.
MCP – Porquê a opção de fazer um filme falado em ronga?
JLB – Um filme daquela natureza só podia ser filmado num dialecto africano. Primeiro, porque lhe dava maior autenticidade; segundo, tal como eu gostaria, se fosse visto por africanos, o seu público principal, a sua mensagem não se perderia.
MCP – Qual o contributo que os actores deram na concepção do filme, da definição da temática e estética africanas?
JLB – O filme estava todo na minha cabeça. Os actores - gente normal, apanhada aqui e ali - só tiveram de vestir a sua pele para viver os papéis da sua própria vida. Inclusivé os figurantes, que aparecem nas cenas rodadas na machamba (em Umbeluzi), são presos de delito comum que vinham da prisão, diariamente, prestar serviço na estação agronómica. Só tive que os aproveitar. Estavam simplesmente a representar e a repetir o que faziam no seu dia-a-dia, que não era em nada diferente do que se fazia em qualquer machamba da colónia. Há imensas imagens captadas em Cinema Directo, que acabei por misturar com as ficcionadas, e que em nada se diferenciavam umas das outras.
Sobre os actores, escusado será dizer que ninguém recebeu um centavo pela sua participação no filme. Malangatana tinha-se encarregado de instruir e de explicar o que se pretendia com a feitura do filme.
MCP - Que papel teve Malangatana Valente?
JLB - O papel de Malangatana foi decisivo para angariar todas as vontades pela parte do elenco negro e para a sua adesão ao filme. Através do seu empenho, tive a participação de actores, músicos, poetas e gente anónima (toda a reconstituição do enterro de Madala), que deu o seu contributo desinteressado para que a sua realização fosse possível. O elenco dos actores brancos foi conseguido através de contactos informais, uns feitos pelo Courinha Ramos, outros feitos por mim junto dos meus próprios amigos.
MCP - O parto com que se inicia o filme? Que simboliza?
JLB – O filme centra-se em dois limites: o nascimento e a morte do negro trabalhador. Com essas cenas queria expressar o que, historicamente, sempre havia sido a herança desse homem: o vazio da esperança. Daí o lamento - Deixem-me ao menos subir às palmeiras, já que lhe está vedado qualquer outro destino. É a tragédia assumida por sucessivas gerações que só a luta e a revolta podem destruir.
O ritual do enterro de Madala é o epílogo lógico dessa impossibilidade histórica: nascer e morrer sem outro horizonte que não seja o derrube permanente da sua humanidade.
A ordem das coisas não se altera sem luta: resta ao “homem-sofredor” abrir os olhos à esperança e partir para a revolução.
MCP – Após a rodagem do filme, quando percebeu que o filme não ia poder ser visto?
JLB – Penso que, após a visualização por parte dos censores, o filme ficou condenado. Eram demasiadas as propostas que o filme encerrava! Habituados à quietude e ao cinema inofensivo, os censores do regime jamais pensariam poder estar ali um filme diferente de tudo que até ao momento havia saído da Somar.
Penso que as implicações e o alcance do seu conteúdo apanharam igualmente desprevenido o Courinha Ramos porque a sua reacção imediata foi despedir-me.
Hoje penso que, na altura, se nada me aconteceu foi porque, após o meu despedimento, embarquei imediatamente para Lisboa por entender que a minha presença em Moçambique estava ameaçada e podia vir, inclusivé, a ser preso. No entanto, antes de embarcar, ainda tentei apoderar-me a cópia do filme e trazê-la comigo para Portugal. Alguém me persuadiu a não fazer tal loucura! Dada a correlação de forças não tive outra hipótese senão ceder!
Consumava-se assim uma audácia muito fora do comum e demasiado provocadora para poder ser tolerada, ou mesmo aproveitada por a gente do regime, habituada à quietude e à passibidade dos fazedores da cinematografia oficial.
MCP - Que fez o Lopes Barbosa após o despedimento e até ao 25 de Abril?
JLB – Procurei emprego em Lisboa, no sector da cinematografia, que não consegui encontrar. Como alternativa, fiz outros trabalhos que me permitiram sobreviver. Nessa altura dá-se um acontecimento que viria a marcar irremediavelmente a minha vida: a manifestação dum princípio de tuberculose que me apanha em pleno golpe de estado do 25 de Abril. Essa doença obriga-me a regressar à minha cidade natal onde procuro guarida na casa de minha mãe para um tratamento que se irá prolongar até Agosto de 1974.
Apesar de doente, faço contactos com Moçambique e combino com Courinha Ramos um encontro em Lisboa para a exibição do filme. Na posse do negativo que Courinha Ramos trás, fazem-se, na Tobis, duas cópias - uma em 35 mm e outra em l6mm - partindo o produtor novamente para Lourenço Marques e levando consigo a cópia em 35mm. A sua intenção era preparar a estreia em Moçambique. Com a cópia de 16mm em meu poder organizo a primeira exibição pública na Escola Superior das Belas Artes do Porto, enquanto preparo o regresso a Lourenço Marques que virá a acontecer no mês seguinte, Setembro. Mal desembarco informam-me que o filme já tinha sido estreado e rapidamente retirado do cartaz por a sua estreia ter coincidido com os acontecimentos do 7 de Setembro e o produtor, temeroso de poder dar origem ao desencadeamento de acções violentas por a temática apresentada ser uma clara denúncia do regime que agora chegava ao fim, resolvera pura e simplesmente arquivar o filme na gaveta do esquecimento... para sempre! Restava-me a possibilidade de exibi-lo no formato de 16mm. Organizo exibições paralelas no cineclube de Lourenço de Marques e Cadeia da Machava.
Inesperadamente, um vez que tinha interrompido o tratamento antituberculoso, sou acometido por um colapso nervoso, seguido de esgotamento nervoso e posterior depressão nervosa. Arrasto-me - é o termo - para Portugal em Maio de 1975, deixando para trás um convite, para me manter em Moçambique, que parte de pessoas ligadas ao novo poder politíco de transição, o qual não posso aceitar dadas as minhas condições de saúde. Refugio-me no Porto para um tratamento psicoanalítico que se manterá por vários anos. E inicio uma travessia do deserto que irá durar 20 anos.
De 1976 a 1977 assino um contrato com o Instituto de Tecnologia Educativa e integro-me, como operador de camâra na equipa que transmite diariamente as lições da tele-escola. Depois disso é o desemprego. Nessa altura resolvo escrever uma carta a Luis Bernardo Honwana que ocupava, penso, um cargo de ministro, oferecendo-me para voltar a Moçambique e dar o meu contributo no desenvolvimento da cinematografia nascente moçambicana. Mas não obtive qualquer resposta! Não faço ideia se a carta chegou ao destino! Pouco tempo depois, inesperadamente, sou procurado em minha casa, no Porto, pelo Pedro Pimenta, pertencente ao Instituto Nacional de Cinema (INC) que se desloca a Portugal com o propósito de comprar uma cópia do Deixem-me ao menos subir às palmeiras… que não existe. Entrego-lhe, sem custos, a cópia que tinha ficado em meu poder, no formato de 16mm. Sobre o meu possível regresso a Moçambique, nada é avançado. Penso que não estava mandatado para negociar esse aspecto particular, partindo do princípio que conhecia a minha tentativa junto do Honwana manifestando-lhe o meu interesse em voltar!
Logo a seguir, Camilo de Sousa aborda-me, informalmente, tentando saber se estava interessado em assinar um contrato de cooperante com o INC. Mas, nesse meio tempo, a minha saúde havia-se degradado e resolvo não aceitar o convite. Sentia que não estava nas melhores condições, tanto físicas como psíquicas, para dar a minha melhor contribuição. Posteriormente foram-me chegando notícias que, usando a cópia que lhes facultei, o filme era exaustivamente exibido em Moçambique.
MCP - Como define o modo como foi integrado no Cinema Novo português? Considera que, genericamente, foi posto à margem pela elite dominante – refiro-me a cineastas, críticos e historiadores de cinema?
JLB - Sim, completamente, com a excepção do José de Matos-Cruz que acompanhou um bocado o meu “penar” pelas ruas de Lisboa, sempre que lá ia, na esperança de poder abrir portas. Nenhum dos projectos que meti no Instituto Português de Cinema para o financiamento fílmico de novas obras foi aprovado. Um deles era o “Mayombe”, de Pepetela. Constatei na altura que mexer nas feridas coloniais continuava a ser um problema difícil de ultrapassar.
MCP - No Deixem-me ao menos subir às palmeiras... há uma enorme influência do cinema soviético. Porquê esta opção quando procurou uma estética que fosse entendida por um público africano?
JLB – Na África sobre administração Portuguesa, até à década de sessenta, o cinema era inexistente. Os colonos, e muito menos os africanos, jamais haviam produzido qualquer tipo de obra cinematográfica (com excepção dos jornais de actualidades e os documentários de propaganda). Quando se abriu a possibilidade de realizar o Deixem-me ao menos subir às palmeiras… compreendi que a estética que mais se adequava às imagens que queria filmar teria forçosamente de passar pelos clássicos do cinema. Essa era a escola que iria permitir uma leitura do filme por um público iletrado, como era o caso do africano. Quem não compreende a força das imagens de O couraçado Potemkine e a sua gramática? Pudovkin também me havia ensinado como escrever um argumento que não fosse complicado de entender. Inclusivé, os públicos-alvo a quem os filmes se destinavam estavam muito próximos. É óbvio que não queria de maneira nenhuma imitar Eisenstein nem tinha recursos materiais para tal coisa. O que estava em causa era conseguir fazer um filme que pudesse ser sentido e percebido principalmente pela articulação e composição das suas imagens - se desligássemos o som, a intenção era conseguir o seu entendimento integral. Penso que isso foi conseguido.
MCP – O projecto de fazer um filme de estética africana e para um público africano antes da independência de Moçambique é absolutamente singular. Pode explicar como surgiu essa vontade?
MCP – Fundamentalmente por raiva. Estava farto da porcaria que se fazia em Portugal em matéria de cinema. Havia muito oportunismo e comiseração por parte das várias gerações envolvidas na feitura dos filmes. Obras como aquelas que haviam sido produzidas nas décadas de cinquenta e sessenta sob a égide do Estado Novo, bem como, (algumas, para não dizer muitas...) que traziam a chancela do Cinema Novo, eram intoleráveis pelo seu artificialismo e pretensiosismo bacoco, que só servia para alimentar os egos dos seus autores! Era preciso coragem para romper com a produção dum cinema acomodado à facilidade intelectual e aos vazios dos seus conteúdos.
A finalizar, e em termos de remate, impunha-se dizer: “Perdoai-lhes senhor por aquilo que fizeram no passado...”
Neste caso particular,gostaria de dizer: “Mexei Senhor nas consciências de quem tem poder de decisão e capitais suficientes em Portugal ou em Moçambique que me permita ser apoiado novamente para fazer um novo filme! Obrigado.”

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Abel Escoto: Memórias de um "caçador de imagens"


Já está disponível online a edição de Agosto da revista Doc On line (http://www.doc.ubi.pt/), onde publico uma entrevista a Abel Escoto - grande director de fotografia e operador da primeira série de Imagens de Portugual, actualidades cinematográficas de propaganda que, entre 1953 e 1958, foram dirigidas por António Lopes Ribeiro.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um filme da "frente de guerrilha"



Nascido no Porto em 1944, Joaquim Lopes Barbosa esteve ligado ao Cine-clube local desde os quinze anos. Segundo o artigo Três cineastas de Moçambique, publicado na revista em Fevereiro de 1972, a sua relação com o cinema aprofundou-se quando, ao cumprir o serviço militar obrigatório, foi integrado no Departamento de Foto-cine dos Serviços Cartográficos do Exército.
Quando Lopes Barbosa falou com a Plateia já era operador das actualidades cinematográficas Visor Moçambicano, após uma curta estadia em Angola, onde filmou “Regresso”. Questionado sobre o que representava para si a “7ª Arte”, sustentou:

“A 7ª Arte é uma forma de expressão das realidades concretas, que sinto, e deviam chegar a todos, como uma espécie de murro no estômago. Actualmente, a definição que dou ao cinema é a de que deve ser uma frente de guerrilha, actuando o mais positivamente possível, contra os tabus, as morais duvidosas e os lugares-comuns bafientos e anacrónicos.”

Em Cinema Novo português 1960-74 , José de Matos-Cruz explica que o projecto de realização de Deixem-me ao menos subir às palmeiras… se iniciou ainda em Angola e surgiu da vontade de Lopes Barbosa “transpôr para o cinema uma temática e uma estética africanas ”. Monangamba, do poeta António Jacinto , descreve as duras condições de vida dos negros contratados e inspirou o aspirante a cineasta. Em Moçambique, foi-lhe acrescentado, como influência, Dina, conto publicado, em 1964, no livro Nós matámos o cão tinhoso de Luís Bernardo Honwana.
Como o filme não foi subsidiado não houve proibição da rodagem mas houve pressões para que as filmagens fossem suspensas por quase todos os intervenientes serem negros, facto insólito no cinema local e português em geral. Lopes Barbosa e Malangatana Valente – ex-prisioneiro político e que fez uma pequena aparição no ritual fúnebre - foram interrogados pela PIDE/DGS sobre o tema do filme.
Para a recriação cinematográfica de uma temática e estética africanas Lopes Barbosa ensaia uma linguagem em que aplica processos da escola soviética, associando-a à estrutura do cinema americano, com os Bons, os Maus e uma acção que potencia o crescimento da intensidade dramática.
O filme é falado em ronga para facilitar o entendimento dos espectadores autóctones. Nas sequências em que se retrata o poder colonial, o dono da machamba e família falam em inglês o que terá sido um expediente a que se recorreu já na montagem. Pretendia-se, com isso, que a censura não visasse a obra como uma crítica ao colonialismo português por um lado, mas, por outro, não se perdesse a ligação da obra à realidade africana.
O subterfúgio não resultou. Lopes Barbosa, foi despedido da Somar Filmes em Julho de 1973 e, três meses depois, receando pela sua segurança, abandonou Moçambique.
Após o 25 de Abril de 1974 - data da Revolução que repôs a democracia em Portugal - Courinha Ramos veio a Lisboa fazer uma cópia do filme e tentar distribuir comercialmente a obra, o que não se concretizou. Esta cópia, que está depositada na Cinemateca Portuguesa, é a única completa existente após o incêndio que, em 1991, deflagrou no Instituto Nacional de Cinema moçambicano, destruindo parte da sua colecção.

Texto: Maria do Carmo Piçarra

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Da “outra banda” do olhar - Catembe


Quando concebeu Catembe, Faria de Almeida (1934-) – jovem cineasta nascido em Moçambique que estudou na London School of Film Technique com uma bolsa do Fundo do Cinema - estava ciente de como as viagens presidenciais tinham conformado o memorial fílmico colonial:

“Na verdade eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos pretos com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República vestido de branco, brindado por papelinhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção.”

Por isso Catembe, a “outra banda” de Lourenço Marques, também é nome de olhar disruptivo. O trangressor da obra é ser a primeira interpretação crítica da realidade colonial, embora tenha tido de atender ao patrocínio do Fundo do Cinema, às pressões antes da rodagem e, acima de tudo, quando foi alvo de censura, teve de desembaraçar-se de quase todo o elemento ficcional.
Em Setembro de 1964, a Informação nº 279 foi enviada do Ministério do Interior para o SNI pedindo esclarecimentos:

“Há conhecimento de que uma equipa de filmagens da metrópole tenciona deslocar-se a Lourenço Marques a fim de produzir um filme sobre o tema ‘a paixão de um pescador negro de Catembe, de vida miserável, por uma prostituta, parece que de raça branca’ tendo para o efeito conseguido já das autoridades um subsídio de 600 contos. (…) No entanto, o CITMO, depois de tomar conhecimento do argumento, que conteria cenas da mais baixa miséria moral e material, resolveu não aconselhar a concessão do subsídio desejado, uma vez que o filme, nas bases em que seria realizado, prestar-se-ia a ser usado como instrumento de propaganda contrária à presença de Portugal em África.”

A questão esclareceu-se e o filme foi feito. Depois, o SNI ordenou a revisão do texto, recomendando a presença e pedido o parecer de um representante do Ministério do Ultramar no visionamento do filme pelo Conselho do Fundo do Cinema. O parecer foi pouco abonatório, considerando inconveniente que o filme surgisse como sendo financiado pelo SNI. O secretário nacional recusou-se a “autorizar” o pagamento do subsídio sem que o Ministério do Ultramar desse a última palavra, que coube ao Agente Geral do Ultramar, Leonel Pedro Banha da Silva. Excertos do ofício escrito após novo visionamento testemunham a estranheza que, o filme de Faria de Almeida provocou no funcionário colonial, devido ao olhar disruptivodo realizador:

“(…) II. A convivência racial é um tema francamente mal explorado. Não se poderá dizer que haja, a este respeito, imagens ‘muito convenientes’ mas também se desaproveita a oportunidade de mostrar imagens ‘convenientes’, aliás, relativamente fáceis de recolher (as escolas, liceus e actividades desportivas permitem, sempre, óptimas imagens quanto a este aspecto).
Referem-se, porém, por parecerem de alguma inconveniência os aspectos seguintes:
a) está dado, com demasiada nitidez, o contraste entre o ‘domingo’ (o filme é repartido pelos sete dias da semana) – em que se demonstram o descanso e prazeres de ‘brancos’ e a ‘segunda-feira’ que começa por mostrar o trabalho quase só de ‘pretos’. A demasiada nitidez deste contraste pode ser ‘amaciada’ com uma simples alteração de montagem, que o produtor se declara plenamente disposto a fazer.
b) Cenas finais, passadas, em ‘cabarets’ embora mostrando ‘brancos’ e ‘pretos’ parecem igualmente inconvenientes pois não se afigura que reflictam o melhor tipo de relações que podem estabelecer-se.
c) O contraste entre a ‘opulência’ da cidade e a ‘pobreza’ de Catembe também deveria ser atenuada pelo texto – e não é.”

Os 45 minutos de filme que sobreviveram são sobretudo os de natureza documental. Ainda assim foram proibidos porque, mais do que a agudeza da visão crítica do autor, as imagens não se conformam ao memorial fílmico já constituído, sedimentado nos documentários e actualidades de propaganda, e em que se baseia a representação das colónias.
Formatar Catembe à medida dos requisitos dos censores era tarefa impossível porque a questão fulcral foi a da diferença de olhares sobre a realidade, vista de modo directo e questionador por um jovem criador, e fixada de modo conservador e enquistado pelas instituições do regime.

Texto: Mª do Carmo Piçarra
Foto da rodagem, em Catembe, cedida pelo realizador Manuel Faria de Almeida

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

"O modo português de estar no mundo" em actualidades cinematográficas de propaganda - II


O Jornal Português foi a primeira revista de actualidades cinematográficas produzida continuamente em Portugal embora com uma certa irregularidade, devida aos custos do cinema, demasiado caro para Salazar. Apesar de se anunciar como uma revista mensal, teve apenas 95 edições até 1951 – uma média de sete números por ano. Não obstante, com o financiamento do secretariado da propaganda estatal, foi filmada pelos mais conceituados operadores da época e dirigida por António Lopes Ribeiro.
Com o afastamento de António Ferro do Secretariado Nacional da Informação (SNI) foi também interrompida a produção do Jornal Português, tendo o género regressado, com apoio estatal pelo mesmo organismo e com os mesmos propósitos, em 1953, com Imagens de Portugal.
A primeira série de Imagens de Portugal, também com direcção de António Lopes Ribeiro, compreendeu a produção, contínua e quinzenal, de 135 números de actualidades. A mudança de direcção, que nesta segunda série passou a ser assegurada até ao número 223 por Perdigão Queiroga, coincidiu com a substituição de Eduardo Brazão como director do SNI por César Moreira Baptista. Finalmente, foi a Tobis a produzir a terceira série da revista, até à edição 449, estreada em Janeiro de 1970.
Ao longo do Jornal Português, Portugal de Além-Mar teve escasso valor-notícia e nunca foi filmado. Em termos de política interna refiram-se cinco tipos de acontecimentos abordados: partidas e regressos das colónias do Chefe de Estado, tomadas de posse de funcionários administrativos coloniais, comemorações de feitos históricos e homenagens e funerais de figuras coloniais de relevo. No que concerne à política externa estritamente colonial, destacam-se contactos diplomáticos privilegiados com a União Africana e a defesa militar de territórios durante a II Guerra Mundial. O desporto, com enfoque colonial, é alvo de uma notícia – aborda a “renovação do pugilismo em Portugal” por moçambicanos e é uma das únicas duas reportagens em que “assimilados” ou indígenas figuram ao longo desta revista.
Com o início de Imagens de Portugal, em 1953, o que muda na abordagem das questões coloniais feita pelas actualidades?
Continua, na primeira série, a escassez das notícias relativas a desporto ou cultura. É dada maior importância – também relativa porque residual - às homenagens e efemérides envolvendo figuras que se destacaram pela acção nas campanhas militares de África do século precedente ou pela acção evangelizadora.
Pela primeira vez na história das actualidades de propaganda do Estado Novo, há uma situação de conflito que visa Portugal e por isso a questão de Goa é, quanto à temática colonial, a mais noticiada. A actualidade “ultramarina” continua, no entanto, a não ser notícia por si. Não se noticiam acontecimentos que tenham as colónias como cenário; apenas os assuntos coloniais administrados ou evocados na metrópole. Só as viagens presidenciais são filmadas no local.
É no âmbito destas viagens presidenciais que os indígenas figuram nas actualidades cinematográficas, excepção feita aos aniversários de Salazar no poder, em que são trazidos régulos de vários locais para comprovar a unidade do território.
Na segunda série de Imagens de Portugal o conflito com a União Indiana continua a ser tema forte da política nacional mas para o final é ofuscado pela escalada de conflitos e partida de tropas para Angola. Dá-se então o aumento de notícias na área cultural bem como a inclusão de notícias sobre educação e as colónias e os seus habitantes começam a tornar-se alvo de interesse para as actualidades.
A terceira série de Imagens de Portugal abrange um longo período - que vai desde o início da guerra colonial até ao segundo ano de governação de Marcelo Caetano. Nela, as colónias são notícia quase todos os números das actualidades. O “Ultramar” torna-se central na política nacional e não se reporta acontecimento nesta área em que não se aluda ao mesmo. O segundo tema mais noticiado nas Imagens é a Guerra. Está presente em todas as comemorações e efemérides mas é directamente abordada nas notícias sobre os exercícios de tropas, modernização do exército e condecorações a militares e a civis, por combate ao “terrorismo”. A abordagem da Guerra é seguida de perto por outra, a da Economia e Progresso das colónias. Procura-se ilustrar o investimento no desenvolvimento dos sectores agrícola, industrial e turístico como prova que Portugal assume a “responsabilidade de Nação civilizadora” além da aposta na unificação económica dos territórios considerados portugueses.
Acontecimentos culturais, notícias desportivas e educativas relativos às colónias repartem, com alguma proporcionalidade, a divulgação neste longo período da série de actualidades estatal.
Em suma, se os portugueses das colónias não figuram nas primeiras actualidades estatais de propaganda, a situação é corrigida progressivamente. Tal ocorrência está directamente ligada à eclosão da Guerra e à necessidade de, internamente, promover a imagem de um país plurirracial, pluricultural e pluricontinental. Estas designações são usadas frequentemente a partir da segunda série de Imagens de Portugal e são usadas, sobretudo na terceira série, num esforço claro de apropriação – e de conformação - do luso-tropicalismo ao ideário do Estado Novo e de superação da visão antropobiológica dominante, óbvia no 1º Congresso Nacional de Antropologia Colonial, em 1934.
Em simultâneo, também os territórios coloniais são desvendados nas belezas naturais, mas, sobretudo, quanto ao desenvolvimento civilizacional trazido pelos portugueses através das reportagens sobre escolas, barragens, portos, fazendas agrícolas, etc. Quanto à figuração de colonos e indígenas, bem como dos territórios coloniais, são, porém, as viagens presidenciais que conformam o memorial fílmico colonial.

“O modo português de estar no mundo” - I


A asserção "Do Minho a Timor somos todos portugueses" assinala uma mudança no modelo político colonial português. Até à década de 40, inclusivé, este teve subjacente uma visão antropobiológica - que definiu um padrão de raça portuguesa e opôs-se à miscigenação - disseminada pelas figuras referenciais das escolas antropológicas de Coimbra e Porto, Eusébio Tamagnini e Mendes Correia respectivamente. O regime reconhecia alguns direitos e dava certas garantias aos povos “primitivos”, promovia a sua “nacionalização” impondo-lhes serem portugueses mas o “darwinismo social” mantinha-se dominante e estava patente na concepção rácica do negro como um “reservatório de energia”.
Com a revisão constitucional de 1951, devida à emergência do anti-colonialismo pós II Guerra Mundial, abandonam-se os conceitos de império e colónia. Tal é consagrado na Lei Orgânica do Ultramar de 1953, que reflecte um princípio integracionista e reforça a unidade do território metropolitano e ultramarino. Ao conceito de império sucede o de nação multiracial e pluricontinental em que todos os territórios são Portugal e constituem a Nação.
Sarmento Rodrigues, ministro das Colónias desde 1950, acciona a reforma administrativa não descurando a reforma ideológica do modelo político colonial. Este assimila então - adaptando-o e despojando-o da perspectiva sexual - o luso-tropicalismo, teoria do sociólogo Gilberto Freyre, sobre um multiculturalismo assente num denominador comum: a especificidade da adaptação do português e sua cultura a ambientes tropicais.
Nas actualidades de propaganda a mutação ideológica no modelo colonial traduz-se na escolha das notícias relativas a Portugal e ao Ultramar, no teor dos textos da narração e na selecção dos locais filmados.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

25, José Celso e Celso Luccas


Em Paris, a Teresa Castro e a Lúcia falaram-me de "25". Disse-me a Lúcia, após ver fragmentos do "Deixem-me ao menos subir às palmeiras...", que pensa que esta obra pós-independência de Moçambique inclui fragmentos do filme do Lopes Barbosa. Estou à espera de cópia, para conferir... Entretanto, vou perguntar ao Lopes Barbosa o que sabe ele sobre isso.

"Antiga colónia e província ultramarina portuguesa, Moçambique tornou-se independente no dia 25 de Junho de 1975, depois de uma guerra de libertação que durou cerca de dez anos. Exilados em Portugal, os brasileiros José Celso (fundador do Teatro Oficina) e Celso Luccas realizam então no novo estado africano um filme que documenta os últimos dias da colonização e as comemorações que se seguiram à independência, celebrando a revolução iniciada pelo presidente Samora Machel. Filmado em 16 mm, e incluindo inúmeras imagens dos arquivos da radiotelevisão portuguesa, 25 é um filme “revolucionário”. Contemporâneo das experiências do Grupo Dziga Vertov, recheado de citações ao trabalho de Sergei Eisenstein e de Glauber Rocha e realizado apenas alguns anos depois de William Klein ter documentando o primeiro Festival Pan-africano de Argel (1969), o filme de José Celso e de Celso Luccas tenta responder ao desafio de criar um cinema novo para uma jovem nação. Indissociável dum discurso político abertamente marxista, o filme deve ser colocado num duplo contexto histórico, remetendo tanto para o movimento de descolonização e de reorganização geopolítica do continente africano, como para a história singular do cinema moçambicano. Na verdade, Moçambique foi um dos raros países africanos a reconhecer de imediato o papel imprescindível do cinema enquanto vector propagandístico. Instrumento posto ao serviço duma unidade nacional que precisava de ser construída, forma de reapropriação da imagem de si, o cinema é, para Machel, uma poderosa arma política. A criação do Instituto Nacional do Cinema em 1975 vem dar forma a esta intuição. Documento único, tanto em termos históricos como no contexto complexo e heterogéneo do jovem cinema africano, 25 destaca-se ainda pela sua banda-sonora extremamente rica, incluindo canções de João Gilberto, Jorge Ben Jor, etc."
Da sessão apresentada no Le Silo pela Teresa Castro.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Catembe na revista de arte contemporânea Buala

Hoje, dia de África, foi lançada a nova revista de arte contemporânea Buala. Inclui uma entrevista minha a Faria de Almeida a propósito do caso Catembe.

http://www.buala.org/en/afroscreen/catembe-or-complaint-from-the-young-censored-soul

quinta-feira, 11 de março de 2010

Catembe, o filme com mais cortes da história do cinema.

É um dos filmes que estudo, fazendo o contracampo com as actualidades cinematográficas de propaganda do Estado Novo.

terça-feira, 9 de março de 2010

Nambuangongo, Meu Amor


Nambuangongo Meu Amor

Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo

Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.

Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.

Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.

É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.

Manuel Alegre

Deixem-me ao menos subir às palmeiras...


Em 1961, o poeta angolano António Jacinto publicou o poema Monangamba, depois tornado libelo anti-colonial pela interpretação de Rui Mingas. Inspirou o realizador portuense Lopes Barbosa a realizar Deixem-me ao menos subir às palmeiras... inédito no circuito comercial e raramente visto. Faz parte da pré-história do cinema moçambicano e a sua produção tem muito que revelar...

Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roca grande tem café maduro
e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:


Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras
Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

- "Monangambééé..."

Para ouvir a versão de Rui Mingas: http://duouronegro.com.sapo.pt/musicafricana.html