terça-feira, 24 de agosto de 2010

Da “outra banda” do olhar - Catembe


Quando concebeu Catembe, Faria de Almeida (1934-) – jovem cineasta nascido em Moçambique que estudou na London School of Film Technique com uma bolsa do Fundo do Cinema - estava ciente de como as viagens presidenciais tinham conformado o memorial fílmico colonial:

“Na verdade eu sabia que a ideia que em Portugal se fazia de Moçambique era a dos pretos com bandeiras na mão, em alas, deixando passar o Presidente da República vestido de branco, brindado por papelinhos multicolores atirados das varandas. Ninguém sabia como as pessoas ali viviam, que pessoas, como pensavam elas, como se divertiam e quais os seus problemas. Era isto que eu queria mostrar, e pensava que as entidades oficiais tinham percebido a intenção.”

Por isso Catembe, a “outra banda” de Lourenço Marques, também é nome de olhar disruptivo. O trangressor da obra é ser a primeira interpretação crítica da realidade colonial, embora tenha tido de atender ao patrocínio do Fundo do Cinema, às pressões antes da rodagem e, acima de tudo, quando foi alvo de censura, teve de desembaraçar-se de quase todo o elemento ficcional.
Em Setembro de 1964, a Informação nº 279 foi enviada do Ministério do Interior para o SNI pedindo esclarecimentos:

“Há conhecimento de que uma equipa de filmagens da metrópole tenciona deslocar-se a Lourenço Marques a fim de produzir um filme sobre o tema ‘a paixão de um pescador negro de Catembe, de vida miserável, por uma prostituta, parece que de raça branca’ tendo para o efeito conseguido já das autoridades um subsídio de 600 contos. (…) No entanto, o CITMO, depois de tomar conhecimento do argumento, que conteria cenas da mais baixa miséria moral e material, resolveu não aconselhar a concessão do subsídio desejado, uma vez que o filme, nas bases em que seria realizado, prestar-se-ia a ser usado como instrumento de propaganda contrária à presença de Portugal em África.”

A questão esclareceu-se e o filme foi feito. Depois, o SNI ordenou a revisão do texto, recomendando a presença e pedido o parecer de um representante do Ministério do Ultramar no visionamento do filme pelo Conselho do Fundo do Cinema. O parecer foi pouco abonatório, considerando inconveniente que o filme surgisse como sendo financiado pelo SNI. O secretário nacional recusou-se a “autorizar” o pagamento do subsídio sem que o Ministério do Ultramar desse a última palavra, que coube ao Agente Geral do Ultramar, Leonel Pedro Banha da Silva. Excertos do ofício escrito após novo visionamento testemunham a estranheza que, o filme de Faria de Almeida provocou no funcionário colonial, devido ao olhar disruptivodo realizador:

“(…) II. A convivência racial é um tema francamente mal explorado. Não se poderá dizer que haja, a este respeito, imagens ‘muito convenientes’ mas também se desaproveita a oportunidade de mostrar imagens ‘convenientes’, aliás, relativamente fáceis de recolher (as escolas, liceus e actividades desportivas permitem, sempre, óptimas imagens quanto a este aspecto).
Referem-se, porém, por parecerem de alguma inconveniência os aspectos seguintes:
a) está dado, com demasiada nitidez, o contraste entre o ‘domingo’ (o filme é repartido pelos sete dias da semana) – em que se demonstram o descanso e prazeres de ‘brancos’ e a ‘segunda-feira’ que começa por mostrar o trabalho quase só de ‘pretos’. A demasiada nitidez deste contraste pode ser ‘amaciada’ com uma simples alteração de montagem, que o produtor se declara plenamente disposto a fazer.
b) Cenas finais, passadas, em ‘cabarets’ embora mostrando ‘brancos’ e ‘pretos’ parecem igualmente inconvenientes pois não se afigura que reflictam o melhor tipo de relações que podem estabelecer-se.
c) O contraste entre a ‘opulência’ da cidade e a ‘pobreza’ de Catembe também deveria ser atenuada pelo texto – e não é.”

Os 45 minutos de filme que sobreviveram são sobretudo os de natureza documental. Ainda assim foram proibidos porque, mais do que a agudeza da visão crítica do autor, as imagens não se conformam ao memorial fílmico já constituído, sedimentado nos documentários e actualidades de propaganda, e em que se baseia a representação das colónias.
Formatar Catembe à medida dos requisitos dos censores era tarefa impossível porque a questão fulcral foi a da diferença de olhares sobre a realidade, vista de modo directo e questionador por um jovem criador, e fixada de modo conservador e enquistado pelas instituições do regime.

Texto: Mª do Carmo Piçarra
Foto da rodagem, em Catembe, cedida pelo realizador Manuel Faria de Almeida

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