quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Queixa da alma jovem censurada


Catembe (1965) documenta os sete dias da semana no quotidiano de Lourenço Marques. Além de Cinema Directo – usado sobretudo nas entrevistas de abertura em que Manuel Faria de Almeida pergunta a transeuntes na Baixa lisboeta o que sabem sobre Lourenço Marques –, integrou sequências de ficção protagonizadas pela mulata Catembe. Após o corte, imposto pelo Ministério do Ultramar, de 19’ dos 87’ da obra original, uma segunda versão, documental, de apenas 45’ e remontada a partir das sequências deixadas sem sentido pelos cortes efectuados, foi proibida pela Comissão da Censura. Face ao paradoxo da brutalização de um filme subsidiado pelo Fundo do Cinema Nacional, explique-se que esse apoio se enquadrou na aposta em divulgar cinematograficamente as colónias.
Catembe, a “outra banda” de Lourenço Marques, também é, portanto, nome de olhar disruptivo. Além da qualidade técnica e sensibilidade estética evidentes, o maior mérito da obra é o de propôr uma primeira interpretação crítica da realidade colonial. Não obstante o patrocínio pelo Fundo e as pressões antes da rodagem, aborda temas fracturantes: o “trabalho” (de brancos e negros), as “bifas” (e a liberdade sexual de rapazes/raparigas), o afastamento entre “intelectuais & não intelectuais”, e se há “cinema em Moçambique”. É, porém, “a poesia da outra banda”, que sintetiza a intenção do autor: revelar o esforço brutal dos negros para ganharem … quase nada.
Formatar Catembe à medida da censura era impossível. A questão fulcral foi a da diferença de olhares sobre a realidade, conhecida e questionada pelo jovem cineasta e fixada de modo conservador e enquistado pelo regime. Assim, as imagens propostas deformam o memorial fílmico constituído, sedimentado nos documentários e actualidades de propaganda, em que se baseou a representação das colónias.
Catembe figurou no Guinness Book como o filme alvo de mais cortes pela censura na história do cinema. Mutilado e censurado, além da ante-estreia para amigos em 1965, após o 25 de Abril foi mostrado apenas duas vezes na Cinemateca Portuguesa. A 27 de Novembro acontecerá, em Coimbra (mais pormenores para breve), a quinta projecção pública e, em complemento, serão exibidos 11’ dos cortes considerados perdidos que recentemente Faria de Almeida depositou no ANIM. Se a projecção é condição fundamental para que o cinema se realize, que existência teve Catembe como filme? E que futuro?

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